Exame.com
Continua após a publicidade

Bernie Sanders não é um socialista

Nos dias de hoje, se você defender algo como cuidados infantis universais, adeptos de políticas conservadoras vão te acusar de querer transformar a América na União Soviética

BARNIE SANDERS: o democrata é um dos favoritos para disputar a Casa Branca com Trump.  / REUTERS/Mike Segar
BARNIE SANDERS: o democrata é um dos favoritos para disputar a Casa Branca com Trump. / REUTERS/Mike Segar
P
Paul Krugman

Publicado em 28 de fevereiro de 2020 às, 13h23.

Os republicanos têm um histórico longo e ardiloso de vincular qualquer tentativa de melhorar as vidas americanas com os males do “socialismo”. Quando o Medicare foi inicialmente proposto, Ronald Reagan chamou-o de “medicina socializada”, e afirmou que ele destruiria nossa liberdade. Nos dias de hoje, se você defender algo como cuidados infantis universais, adeptos de políticas conservadoras vão acusar você de querer transformar a América na União Soviética.

É uma estratégia política desonesta e hipócrita, mas é difícil negar que em alguns casos ela tem funcionado. E agora o líder atual da disputa presidencial democrata – não um líder com maioria esmagadora de votos, mas no momento a pessoa provavelmente mais provável de sair por cima na disputa – é alguém que cai direitinho nessa estratégia, ao se declarar socialista de fato.

Acontece que Bernie Sanders não é de fato socialista em nenhum sentido normal da palavra. Ele não quer estatizar nossas principais indústrias nem substituir os mercados por um planejamento central; ele já demonstrou admiração não pela Venezuela, mas pela Dinamarca. Ele é basicamente o que os europeus chamariam de social-democrata – e social-democracias como a Dinamarca são, de fato, lugares bastante bons para se viver, com sociedades que, no mínimo, têm mais liberdade que a nossa.

Sendo assim, por que Sanders chama a si mesmo de socialista? Eu diria que tem muito de marketing pessoal aí, com um toque de satisfação pessoal em chocar a burguesia americana. Além disso, isso não atrapalhava muito Sanders quando ele era só um senador de Vermont, um estado muito liberal.

Acontece que, caso Sanders se torne o indicado dos democratas para disputar a presidência, sua autodescrição deturpada vai ser um presente para a campanha de Trump. Assim como as propostas de Sanders para a política econômica. O sistema de saúde de pagador único é a)uma boa ideia, em princípio, e b)muito improvável de acontecer na prática. Só que, ao fazer do Medicare para Todos os centro da campanha dele, Sanders tiraria o foco da determinação do governo Trump de acabar com a rede de assistência social que nós já temos.

Para ser claro, se Sanders for de fato o indicado, o Partido Democrata deveria dar seu apoio incondicional a ele. Ele provavelmente não conseguiria transformar a América em uma Dinamarca – e mesmo que pudesse, o presidente Trump está tentando nos transformar em uma tirania nacionalista branca como a Hungria. Qual você acha melhor?

Ainda assim, eu gostaria que Sanders não estivesse tão decidido a se fazer de alvo fácil para as difamações de direita.

Por falar em fingimento político que não ajuda, quem também tem dado tiros no próprio pé é o líder nas primárias democratas de New Hampshire. Recentemente, Pete Buttigieg vem escolhendo posar de falcão do déficit, demonstrando assim que, mesmo que seja um rosto novo, ele tem ideias com prazo de validade vencido há tempos.

Talvez Buttigieg não esteja a par do consenso crescente entre os economistas atuais de que a histeria com o déficit de sete ou oito anos atrás foi gravemente exagerada. No ano passado os ex-economistas-chefe do governo Obama publicaram um artigo com o título “Quem tem medo dos déficits orçamentários?” que concluía dizendo que “é hora de Washington deixar sua obsessão com a dívida pública de lado e focar em coisas mais importantes”.

E se Sanders está caindo direitinho em uma estratégia política republicana desonesta, Buttigieg está caindo em outra: a de pregar austeridade fiscal na economia quando um democrata ocupar a Casa Branca para emprestar livremente assim que o Partido Republicano retomar o poder. Se os democratas ganharem, eles devem buscar uma pauta progressista, e não queimar capital político limpando a bagunça do Partido Republicano.

De novo: caso Buttigieg de algum modo seja o indicado democrata, o partido devia apoiá-lo sem restrições. O que quer que ele diga sobre déficits, ele não faria o mesmo que os republicanos: usar os temores sobre a dívida para cortar programas sociais.

Portanto, quem os democratas vão indicar? Eu sei tanto quanto você. O que é realmente importante, porém, é que o partido mantenha o foco em seus pontos fortes e nos pontos fracos de Trump.

Porque o fato é que todos os democratas que buscam a Presidência, de Bloomberg a Bernie, são no mínimo moderadamente progressistas; todos eles querem manter e ampliar a rede de assistência social combinada a um aumento dos impostos dos ricos. E todas as evidências de pesquisas de opinião indicam que a América é em sua essência um país de centro-esquerda – razão pela qual Trump prometeu aumentar os impostos dos ricos e proteger os principais programas sociais durante a campanha de 2016.

Mas ele mentiu, e a essa altura qualquer pessoa de cabeça aberta sabe. Assim, os democratas têm a chance perfeita de se mostrar, sinceramente, como defensores da Previdência Social, do Medicare, do Medicaid e da agora popular Lei dos Serviços de Saúde Acessíveis, contra os republicanos que estão de modo mais ou menos descarado a favor dos interesses dos plutocratas contra os das famílias que trabalham.

Essa oportunidade, contudo, vai ser desperdiçada se a indicação democrata, quem quer que seja, transformar a eleição num referendo tanto sobre o sistema de saúde pública de pagador único ou sobre a redução do déficit, sendo que nenhum dos dois temas é especialmente popular. As coisas vão piorar ainda mais se os próprios democratas passarem a se engalfinhar em questões de pureza ideológica ou probidade fiscal.

O ponto é que, quem quer que seja o indicado ou indicada, os democratas precisam construir uma coalizão tão ampla quanto possível. Do contrário, eles vão entregar a eleição para Trump – e isso seria uma tragédia para o partido, o país e o mundo.