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Atrocidades na fronteira sul

A coisa mais importante para se entender é que as atrocidades que o nosso país está cometendo agora na fronteira não representam uma reação exagerada ou uma resposta mal implementada a algum problema real que precisa de solução

IMIGRANTES: presidente Trump ordena reunião de famílias imigrantes, questão separadas desde abril / REUTERS | Jose Luis Gonzalez
IMIGRANTES: presidente Trump ordena reunião de famílias imigrantes, questão separadas desde abril / REUTERS | Jose Luis Gonzalez
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Paul Krugman

Publicado em 4 de julho de 2018 às, 10h53.

A rapidez do declínio moral no governo Donald Trump é de tirar o fôlego. Em questão de meses nós fomos de uma nação que representava vida, liberdade e a busca da felicidade para um país que separa crianças de seus pais e as coloca em jaulas.

O que é quase igualmente notável sobre este mergulho na barbárie é que ele não é uma resposta a algum problema verdadeiro. A invasão em massa de assassinos e estupradores da qual o Sr. Trump fala, a onda de crimes cometida pelos imigrantes aqui (e, na cabeça dele, por refugiados na Alemanha), são coisas que simplesmente não estão acontecendo. São apenas fantasias doentias sendo usadas para justificar atrocidades reais.

E sabem do que isso me lembra? Da longa trajetória do antissemitismo, uma história de preconceito alimentada por mitos e boatos que acabou em genocídio.

Primeiro, vamos falar sobre a imigração contemporânea aos EUA e como ela se compara a essas fantasias doentias.

Há um debate altamente técnico entre economistas sobre se imigrantes com baixos níveis de educação exercem um efeito depressivo nos ganhos de trabalhadores nativos com baixos níveis de educação (a maioria dos pesquisadores descobriu que não, mas há alguma discordância). Esta discussão, porém, não está desempenhando papel algum nas políticas de Trump.

O que essas políticas refletem, em vez disso, é uma visão da assim chamada “carnificina americana”, de grandes cidades tomadas por imigrantes violentos. E esta visão não tem relação alguma com a realidade.

Por um lado, apesar de um pequeno aumento desde 2014, o crime violento na América está na verdade nos menores níveis históricos, com a taxa de homicídios de volta a onde estava no início da década de 60 (O crime alemão também está em uma baixa histórica, por falar nisso). A carnificina do Sr. Trump é uma invenção da imaginação dele.

É verdade, se nós olharmos por toda a América existe uma correlação entre o crime violento e a prevalência de imigrantes sem documentação regular – uma correlação negativa. Isto é, lugares com muitos imigrantes, legais e irregulares, tendem a ter índices de crime excepcionalmente baixos. O garoto-propaganda desta história de não-carnificina é a maior cidade de todas: Nova York, onde mais de um terço da população é nascida no estrangeiro, o que provavelmente inclui cerca de meio milhão de imigrantes irregulares, e o crime tem caído a níveis nunca vistos desde a década de 50.

E isso realmente não deveria ser surpresa, já que os dados sobre condenações criminais mostram que imigrantes, tanto legais quanto irregulares, têm significativamente menos chances de cometer crimes do que os nascidos no país.

Portanto, o governo Trump tem aterrorizado famílias e crianças, abandonando todas as regras de decência humana, em resposta a uma crise que nem mesmo existe.

De onde vem este medo e ódio de imigrantes? Muito disso parece ser medo do desconhecido: Os estados mais anti-imigração parecem ser lugares, como West Virginia, em que quase nenhum imigrante vive.

Mas o ódio virulento de imigrantes não é só uma preocupação de caipiras. O próprio Sr. Trump é, sem dúvida, um nova-iorquino rico, e muito do financiamento dos grupos anti-imigrantes vem de fundações controladas por bilionários de direita. Por que pessoas ricas e bem-sucedidas acabam odiando imigrantes? Às vezes eu me pego pensando sobre o comentarista de TV Lou Dobbs, que eu costumava conhecer e de quem gostava no começo dos anos 2000, mas que se tornou um anti-imigracionista raivoso (e confidente de Trump), e que atualmente está alertando sobre uma trama pró-imigração vinda dos “Illuminati da rua K”.

Não sei o que move gente assim – mas nós já vimos esse filme antes, na história do antissemitismo.

O problema com o antissemitismo é que ele nunca teve a ver com qualquer coisa que os judeus realmente tivessem feito. Sempre teve a ver com mitos sensacionalistas, em geral baseados em fabricações deliberadas, que foram sistematicamente espalhados para gerar ódio.

Por exemplo, durante séculos as pessoas repetiram os “libelos de sangue”, a afirmação de que judeus sacrificavam bebês cristãos como parte do ritual da Páscoa Judaica.

Na parte inicial do século 20, houve uma disseminação ampla dos “Protocolos dos Sábios de Sião”, um suposto plano de dominação global judaica que provavelmente foi forjado pela polícia russa secreta. (A história se repete, primeiro como tragédia, depois como mais tragédia.)

O documento falso recebeu ampla divulgação nos Estados Unidos graças a ninguém menos que Henry Ford, um virulento antissemita que supervisionou a publicação e distribuição de meio milhão de cópias de uma tradução inglesa, “O Judeu Internacional”. Ford mais tarde se desculpou por publicar uma falsificação, mas o estrago já estava feito.

De novo, por que alguém como o Sr. Ford – não apenas rico, mas também um dos homens mais admirados de seu tempo – teria se rebaixado a este ponto? Eu não sei, mas claramente coisas assim acontecem.

De todo modo, a coisa mais importante para se entender é que as atrocidades que o nosso país está cometendo agora na fronteira não representam uma reação exagerada ou uma resposta mal implementada a algum problema real que precisa de solução. Não há uma crise de imigração; não existe crise alguma de crime imigrante.

Não, a crise real é um surto de ódio, ódio despropositado que não tem relação com qualquer coisa que as vítimas tenham feito. E qualquer um que arrume desculpas para este ódio – que tente, por exemplo, transformar isso em uma história na linha “os dois lados são culpados” – é, de fato, um apologista de crimes contra a humanidade.