Argumentos inconsistentes se multiplicam após o Brexit
Muito da discussão sobre o Brexit e seus impactos me incomoda. Creio que o Brexit é um avanço trágico e que trará muitos prejuízos no longo prazo. Porém, o que temos ouvido até demais dos economistas é a afirmação de que o resultado do referendo também terá consequências negativas no longo prazo. Esta declaração soa […]
Publicado em 9 de julho de 2016 às, 07h32.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h04.
Muito da discussão sobre o Brexit e seus impactos me incomoda. Creio que o Brexit é um avanço trágico e que trará muitos prejuízos no longo prazo. Porém, o que temos ouvido até demais dos economistas é a afirmação de que o resultado do referendo também terá consequências negativas no longo prazo. Esta declaração soa dúbia.
Para ir direto ao ponto, é uma afirmação que não possui fundamento na macroeconomia tradicional – embora seja apresentada como se tivesse. E me preocupa que estejamos presenciando um caso de raciocínio motivado, que pode acabar prejudicando a credibilidade dos economistas.
Vamos começar do princípio: o Brexit quase com certeza terá um efeito negativo no comércio britâncio. Mesmo que o país saia da União Europeia com um acordo nos moldes noruegueses, a perda de acesso garantido ao mercado europeu vai afetar planos de investimentos das empresas e inibir fluxos comerciais.
Esta redução no comércio comparada ao que iria acontecer em qualquer cenário, por outro lado, deixará a economia britânica menos produtiva e mais pobre do que o imaginado. É preciso um certo heroísmo retórico para chegar a um número específico, mas uma queda permanente de 2% a 3% nos salários soa plausível.
Até aqui, tudo bem, ou melhor, mal: isto é a economia tradicional. E quanto aos alertas de que o Brexit vai antecipar uma recessão britânica, ou ao menos acelerar a vinda de uma recessão drástica no curto prazo? De onde vêm estes avisos?
Os argumentos comerciais partem do ponto de vista da oferta econômica: menos comércio significa menos produtividade e, como consequência, menor capacidade produtiva. Porém, o tipo de recessão de que estamos falando aqui é um fenômeno decorrente da procura – uma crise trazida por gastos inadequados. E por que, exatamente, isso acontece?
Até onde eu consigo enxergar, o argumento de que há uma recessão, ou no mínimo uma desaceleração, se baseia em dois pontos de vista não totalmente diferentes: a ideia de que a incerteza irá barrar investimentos e, possivelmente, o consumo, e a ideia de que um aumento na percepção de risco irá piorar as condições financeiras. Vamos cuidar destes pontos, um de cada vez.
Sobre o primeiro: com certeza o Brexit aumenta a incerteza, mas isso é de fato necessariamente ruim para os investimentos? Isso não está claro de modo algum na literatura teórica sobre o tema: as empresas podem até mesmo investir mais diante da incerteza, para proteger seu território. Se é assim, por que é tão aceito neste caso o argumento de que a incerteza barrará investimentos? Em parte, desconfio que é um tipo de jogo de palavras.
Quando homens de negócios falam em “aumento da incerteza”, eles estão na verdade falando de uma probabilidade maior de coisas ruins acontecerem. Talvez as pessoas que escrevem sobre o aumento da incerteza com o resultado do Brexit também queiram dizer isso.
Porém, neste caso estamos dizendo que coisas ruins acontecerão porque as empresas vão perceber uma probabilidade maior de coisas ruins acontecerem. É um raciocínio circular, qualquer que seja a conclusão que você aceite.
Eu também destacaria que toda grande mudança de política gera incerteza, porque ninguém sabe como ela vai funcionar. Então, por que não ouvimos alertas de recessão quando os países discutem grandes liberalizações comerciais, ou esquemas de privatização, ou reformas trabalhistas? O argumento “incerteza diminui investimento” parece surgir de modo seletivo, empregado apenas contra políticas das quais os economistas não gostam por outras razões.
E quanto ao argumento de que o Brexit vai piorar as condições financeiras, aumentando o risco de spreads? Também parece ser outro argumento circular – o que se diz é que coisas ruins vão acontecer porque os investidores esperam que coisas ruins aconteçam.
Em outras palavras, os argumentos para justificar um grande dano no curto prazo causado pelo Brexit parecem bem fracos. Se um economista tentasse argumentar algo semelhante a favor ou contra a maioria das políticas, seria alvo de muitas críticas. Mas neste caso temos um quase consenso sobre aceitar estes argumentos pobres. Por quê?
Há uma tendência histórica do lado dos economistas de afrouxar seus parâmetros intelectuais sempre que o tema questões comerciais aparece – uma noção de que inconsistência intelectual na defesa do livre comércio não é um defeito. Por exemplo, afirmações de que a liberalização comercial é boa para geração de empregos são amplamente difundidas, mesmo que não tenham fundamento em um modelo tradicional. Como já escrevi no passado, alguns ataques com base em Trumponomics [os preceitos de economia defendidos por Donald Trump], que é realmente terrível, pegam atalhos intelectuais e criam suposições na hora (por exemplo, tarifas vão diminuir o gasto com importações, mas nada deste gasto será investido na produção interna).
Minha suspeita é de que a mesma coisa esteja acontecendo no caso do Brexit. Economistas têm muito boas razões para acreditar que o Brexit terá consequências ruins em longo prazo, e sofrem forte tentação para melhorar seus argumentos, ao fazerem afirmações bastante dúbias sobre o que acontecerá no curto prazo. O fato de muita gente respeitável fazer estas declarações dá a impressão de serem muito mais razoáveis do que são.
Infelizmente, este tipo de coisa, além de ser uma má prática por si só, pode sair pela culatra sem muito esforço. De fato, o recuo nas ações britânicas, hoje em níveis inferiores ao período pré-Brexit, já causa represálias contra economistas convencionais e seus alertas à la Chicken Little. Desculpe, gente: Pensamento inconsistente é sempre um vício, não importa para qual causa ele sirva.
© 2016 The New York Times