Apocalíptico é o novo normal
Incêndios florestais têm sido tão intensos que estão gerando “tornados de fogo” poderosos o suficiente para capotar caminhões de grande porte na Austrália
Publicado em 17 de janeiro de 2020 às, 16h58.
As últimas imagens da Austrália são do que pesadelos são feitos: paredes de fogo, céus cor de sangue, moradores amontoados nas praias tentando escapar do Inferno. Os incêndios florestais têm sido tão intensos que estão gerando “tornados de fogo” poderosos o suficiente para capotar caminhões de grande porte.
A questão é que o verão de fogo da Austrália é só o último da série de eventos climáticos desastrosos que vêm acontecendo ao longo do último ano; inundações nunca vistas antes na região central da América, uma onda de calor que fez as temperaturas chegarem a 50,5ºC, outra que trouxe temperaturas sem precedentes à maioria da Europa.
E todas essas foram catástrofes relacionadas ao aquecimento global.
Notem que eu disse “relacionadas ao” em vez de “causadas pelo” aquecimento global. Esta é uma distinção que tem atordoado muita gente ao longo dos anos. Todo evento meteorológico individual tem múltiplas causas, o que era um dos motivos pelos quais os jornais costumavam evitar mencionar o provável papel das mudanças climáticas nos desastres naturais.
Nos últimos anos, porém, os cientistas do clima vêm tentando pôr fim a essa confusão e passaram a falar em “atribuições a eventos extremos”, que foca em probabilidades: Você não pode necessariamente afirmar que as mudanças climáticas causaram uma onda de calor específica, mas você pode se perguntar quanta diferença o aquecimento global faz na probabilidade daquela onda de calor acontecer. E a resposta, normalmente, é muita diferença: O aquecimento global torna muito mais prováveis os tipos de eventos climáticos extremos que nós estamos vendo.
E ainda que haja um grande volume de aleatoriedade em termos de previsões meteorológicas, na prática esta aleatoriedade torna as mudanças climáticas muito mais prejudiciais em seus estágios iniciais do que a maioria das pessoas pensa. Em nossa trajetória atual, a Flórida como um todo uma hora vai ser engolida pelo mar, mas muito antes disso acontecer, o níveis dos mares em alta vão tornar os episódios de tempestades catastróficas comuns. Muito da Índia em algum momento vai se tornar inabitável, mas as ondas de calor e as secas mortais vão fazer muito mais vítimas bem antes de chegarmos a esse ponto.
Entendam assim: Ainda que vá levar gerações para as consequências plenas do aquecimento global darem totalmente as caras, haverá muitos desastres pontuais e temporários no caminho. O Apocalipse vai virar o novo normal – e isso está acontecendo bem diante dos nossos olhos.
A grande pergunta é se a proliferação de desastres relacionados ao clima enfim vai ser suficiente para acabar com a oposição à ação.
Há alguns sinais de esperança. Um é que a imprensa vem se mostrando muito mais disposta a falar sobre o papel das mudanças climáticas nos eventos meteorológicos.
Há pouco tempo, o mais comum era ler artigos sobre ondas de calor, inundações e secas que pareciam fazer enormes esforços para evitar falar em aquecimento global. Minha impressão é que os repórteres e editores finalmente estão superando esse bloqueio.
O público também parece estar prestando mais atenção, com uma preocupação sobre as mudanças climáticas crescendo de modo significativo ao longo dos últimos anos.
A má notícia é que a crescente conscientização climática nos Estados Unidos em grande parte tem sido entre os democratas; a maioria da base republicana não se abala.
Além disso, o extremismo antiambiental dos políticos conservadores, se é que mudou, vem se tornando ainda mais intenso à medida que a posição deles se torna insustentável do ponto de vista intelectual. A direita costumava fingir que havia uma disputa científica séria sobre a realidade do aquecimento global e suas causas. Agora os republicanos, e o governo Trump em particular, estão simplesmente se tornando hostis à ciência em geral. E aí, será que os cientistas também vão passar a fazer parte do estado subterrâneo?
Além de tudo, este não é um problema somente americano. Mesmo agora, com a Austrália em chamas, o governo atual do país está reafirmando seu compromisso à indústria do carvão e ameaçando criminalizar o boicote a empresas ecologicamente destrutivas.
A ironia doentia da situação atual é que o antiambientalismo está se tornando mais extremo justamente no momento em que as probabilidades de uma ação decisiva deveriam estar melhores do que nunca. Por um lado, os perigos do aquecimento global não são mais previsões sobre o futuro: Nós podemos ver os danos agora, embora isso seja só um aperitivo dos horrores que ainda vêm aí.
Por outro, reduções drásticas nas emissões de gases do efeito estufa agora parecem notavelmente fáceis de se conseguir, ao menos do ponto de vista econômico. Em especial, tem havido tantos avanços tecnológicos em energias alternativas que o governo Trump está tentando desesperadamente intervir a favor da indústria do carvão contra a competição das fontes de energia solar e eólicas.
Ou seja, será que a política ambiental vai ter um papel de destaque na campanha presidencial dos EUA de 2020? A maioria dos democratas parece ter poucas intenções de fazer dela um grande tema, e eu consigo entender o porquê: Historicamente, a ameaça que a política ambiental da direita representou tem parecido abstrata, distante e difícil de enfrentar comparada, digamos, às tentativas republicanas de pôr abaixo o Obamacare.
Mas a onda súbita de catástrofes associadas às mudanças climáticas pode estar mudando a conta política. Não sou especialista em campanhas, mas me parece que os candidatos talvez possam conseguir algum apoio com anúncios mostrando os recentes incêndios e dilúvios e destacando que o presidente Trump e seus amigos estão fazendo tudo o que podem para criar mais desastres desta natureza.
Pois a verdade é que as políticas ambientais de Trump são a pior coisa que ele está fazendo com a América e com o mundo. E os eleitores deveriam saber disso.