A verdadeira razão de Trump estar pegando leve com os sauditas
Aceitar tortura e assassinato é uma traição dos princípios americanos
Publicado em 31 de outubro de 2018 às, 11h53.
Há alguns dias, Pat Robertson, o líder evangélico, conclamou a América a não ficar muito perturbada com a tortura e assassinato de Jamal Khashoggi, porque nós não deveríamos pôr em risco “100 bilhões de dólares em vendas de armas.” Acredito que ele estivesse invocando o pouco conhecido 11º Mandamento, que diz: “Por outro lado, perdoarás coisas como matar e jurar falso testemunho se negociações de armas estiverem em jogo.”
Ok, não é novidade que a direita religiosa tem se ajoelhado aos pés de Donald Trump. Mas a tentativa do Sr. Trump de afastar uma retaliação pelos crimes sauditas dizendo que há grandes compensações econômicas em se manter em bons termos com assassinos, e a disposição dos aliados políticos dele em abraçar sua lógica, ainda assim mostram uma nova fase na degradação da América.
Não são só as afirmações do Sr. Trump sobre o número de empregos em risco – primeiro eram 40 mil, depois 450 mil, depois 600 mil, depois um milhão – que são mentiras. Ainda que essas declarações fossem verdade, nós somos os Estados Unidos; é esperado de nós que sejamos um satélite moral para o mundo, não uma nação mercenária disposta a abandonar seus princípios se o dinheiro for bom.
Dito isso, as afirmações são, de fato, falsas.
Primeiro, não há uma negociação de armas de US$ 100 bilhões com os sauditas. O que o governo Trump efetivamente conseguiu são essencialmente “memorandos de interesse”, melhor entendidos como possíveis acordos futuros, em vez de compromissos. Muitos destes potenciais acordos envolveriam produções na Arábia Saudita em vez de nos Estados Unidos. Já as vendas, caso se materializassem, seriam pulverizadas ao longo de vários anos.
Parece improvável, portanto, que acordos com a Arábia Saudita elevem as exportações anuais de armas dos EUA em mais de alguns poucos bilhões por ano. Quando você tem em mente que as empresas envolvidas, principalmente as aeroespaciais, são de capital altamente intensivo e que não empregam muitos funcionários por dólar de vendas, o número de empregos americanos envolvido certamente está nas dezenas de milhares, se é que chega a tanto, e não nas centenas de milhares. Ou seja, estamos falando aqui de um erro de arredondamento em um mercado de trabalho americano que emprega quase 150 milhões de pessoas.
Outra maneira de encarar as vendas de armas sauditas é notar quão pequenos são os riscos comparados a outras áreas em que o Sr. Trump está descompromissadamente atrapalhando relações comerciais. Ele parece, por exemplo, disposto a começar uma guerra comercial com a China, que importou US$ 187 bilhões de bens e serviços americanos no ano passado.
Finalmente, vale destacar que, nas condições atuais, aumentar exportações, mesmo que você consiga fazê-lo, não vai criar mais empregos globalmente para a economia dos EUA. Por quê? Porque o Federal Reserve acredita que nós estejamos em uma situação de emprego pleno, e que qualquer fortalecimento da economia vai levar o Fed a aumentar as taxas de juros. Como consequência, os empregos acrescentados a uma área como a da venda de armas serão compensados por empregos perdidos em outros setores, à medida que taxas maiores frearem investimentos, ou tornarem os Estados Unidos menos competitivos por fortalecerem o dólar.
Mas vamos falar sério: O Sr. Trump não está pegando leve com os sauditas por causa dos empregos que eles fornecem aos trabalhadores do setor de defesa. Sua conta cada vez maior de quantos empregos estão envolvidos é por si só uma mostra que está na cara que as vendas de armas são uma desculpa, e não um motivo real, para as ações dele. Sendo assim, qual a verdadeira razão dele estar tão disposto a perdoar tortura e assassinato?
Uma resposta é que no fundo ele não desaprova o que os sauditas fizeram. A essa altura, é consenso que o Sr. Trump parece muito mais confortável em meio a ditadores brutais do que entre as lideranças dos nossos aliados democráticos. Lembrem-se, quando o Sr. Trump visitou a Arábia Saudita, o secretário de Comércio dele se encantou com o fato de que não havia manifestantes à vista; algo que tende a acontecer quando os manifestantes são decapitados.
Ah sim, além disso, um presidente que proclama que a imprensa é “inimiga do povo” pode achar que torturar e matar um jornalista crítico não é uma ideia tão ruim assim.
Além disso, os sauditas têm enviados dezenas de milhões de dólares pessoalmente ao Sr. Trump, e continuam a fazê-lo. E os milhões bastante reais indo para o Sr. Trump são uma explicação muito mais plausível para sua amabilidade para com Mohammed bin Salman do que os bilhões imaginários indo para os fabricantes de armas dos EUA.
Claro, os seguidores de Trump torcem o nariz à sugestão de que ele esteja deixando seus interesses financeiros darem forma à política dos EUA. Mas alguma vez o Sr. Trump fez algum sacrifício pessoal em nome do interesse público?
Enfim, não é como se nós tivéssemos que acreditar que as grandes quantias que um presidente recebe de governos estrangeiros não estejam influenciando as decisões dele. A cláusula de emolumentos da Constituição proíbe o presidente de aceitar qualquer favor dessa natureza, para começar.
Infelizmente, os republicanos têm decidido que essa cláusula, assim como grande parte da Constituição, não se aplica quando o partido deles está no poder.
Ou seja, como eu disse, o que nós estamos vendo é mais um passo na degradação do nosso país.
Aceitar tortura e assassinato é uma traição dos princípios americanos; tentar justificar essa traição apelando a supostos benefícios econômicos é uma traição ainda maior. E, quando você soma a isso o fato de as alegadas compensações econômicas serem mentira, e que o lucro pessoal do presidente é uma explicação muito mais provável para as ações deles – bom, patriotas de verdade deveriam estar realmente envergonhados de até que ponto chegamos como uma nação.