A realidade da covid-19 tem um viés liberal
Há muito tempo os EUA rejeitaram a política econômica baseada em evidências em nome das evidências baseadas na política econômica
Publicado em 26 de maio de 2020 às, 15h25.
Última atualização em 26 de maio de 2020 às, 15h54.
Recentemente, os maiores especialistas do governo alertaram que a covid-19 estava longe de controlada, e que o relaxamento prematuro das exigências de distanciamento social poderia ter consequências desastrosas. Até onde eu vi, esta avaliação é a mesma de quase todos os epidemiologistas.
Mas eles estavam gritando contra o vento. Está claro que o governo Trump e os aliados dele já tinham decidido que nós vamos reabrir a economia, não importa o que os especialistas digam. E se os especialistas estiverem certos e isso levar a uma nova alta no número de mortes de americanos, a resposta não vai ser reconsiderar a política, mas sim negar os fatos.
De fato, o afirmacionismo do vírus - insistir que as mortes por covid-19 são tremendamente exageradas e podem refletir um enorme complô médico - já é algo fartamente propagado na direita política. E podemos esperar muito mais disso nos próximos meses.
Em certo sentido, esta guinada na história não deveria causar surpresa. Há muito tempo os EUA rejeitaram a política econômica baseada em evidências em nome das evidências baseadas na política econômica - negando fatos que possam ficar no caminho de uma agenda predeterminada. Quatorze anos se passaram desde que o comediante e comentarista Stephen Colbert fez a célebre piada de que “a realidade tem um viés liberal há muito conhecido”.
Em outro sentido, porém, o empenho da direita em ignorar os epidemiologistas é politicamente descuidado de um modo que as negações anteriores da realidade não eram.
Como muita gente indicou, a estratégia que começa a emergir à direita para lidar com essa pandemia - ou, para ser mais preciso, para não lidar com ela - segue de perto a velha resposta republicana às mudanças climáticas: Não está acontecendo, é uma fraude criada por cientistas liberais e, além do mais, fazer qualquer coisa a respeito pode destruir a economia americana.
De fato, parece que os protestos anti-lockdown das últimas semanas vêm sendo organizados em parte pelas mesmas pessoas e grupos que passaram décadas negando o aquecimento global.
O afirmacionismo do vírus também remete aos vários tipos de afirmacionismo que corriam soltos na gestão Obama. Os afirmacionistas do vírus insistiam que o governo estava escondendo a verdade sobre a inflação galopante; os afirmacionistas do emprego, entre eles um sujeito chamado Donald Trump, insistiam que os números de empregos cada vez melhores eram falsos.
Mas até aí, fazer declarações falsas sobre a economia da era Obama não teve qualquer consequência política. Muito menos, infelizmente, o negacionismo das mudanças climáticas: As consequências desta negação se desenrolam muito lentamente para os eleitores focarem no imenso estrago que ele causará ao longo do tempo.
A negação do vírus, pelo contrário, pode ter um impacto negativo para os republicanos em questão de meses.
De fato, de certa forma isso já vem acontecendo. Graças ao efeito siga-o-líder, muitos líderes mundiais viram seus índices de aprovação desabar à medida que a seriedade da crise da covid-19 ficou aparente; Trump, que passou várias semanas em negação, viu um breve salto, que agora está recuando. Nos Estados Unidos, os governadores que tomaram medidas duras para controlar a pandemia têm sido recompensados com índices de aprovação bastante elevados, enquanto aqueles que minimizaram a ameaça e vêm pressionando por uma reabertura do comércio estão se saindo muito pior.
Agora imaginem a reação - em especial entre os cidadãos americanos mais velhos - se uma tentativa de reabrir a economia levar a uma nova onda de infecções.
Logo, por que Trump e companhia estão indo por esse caminho?
Uma resposta é que milhares de americanos talvez estejam prestes a morrer em nome da média do índice industrial Dow Jones. Nós sabemos que Trump é obcecado com o mercado de ações, e que a recusa de longa data dele de levar a covid-19 a sério supostamente teve muito a ver com a crença dele de que fazê-lo prejudicaria os preços das ações. Hoje Trump pode estar acreditando que fingir que a crise acabou irá levantar as ações, e que é só isso que importa.
Outra resposta é que talvez os republicanos de fato acreditem que os manifestantes armados, anti-distanciamento social e de boné vermelho dos republicanos de fato representem a América “real”. E de fato há americanos que surtam quando alguém pede a eles que aguentem qualquer inconveniência em nome do bem comum. Pesquisas indicam que eles são uma minoria, mas pode ser que o Partido Republicano ache que essas pesquisas são fake news.
Eu gostaria de sugerir, porém, que pode haver uma outra razão para a pressão perigosa para reabrir a economia. A saber, que os republicanos em geral e Trump em particular sofrem de um profundo senso de incompatibilidade.
Quando as autoridades se veem diante de uma crise inesperada, espera-se delas que arregacem as mangas e lidem com ela - que tragam especialistas e desenvolvam e implementem uma resposta eficaz. Foi como o governo Obama respondeu ao vírus ebola em 2014.
Mas o Partido Republicano não gosta de especialistas, e também não tem ideias de política econômica que não sejam cortes de impostos ou desregulamentação. Ou seja, eles não sabem como responder a crises que não se encaixem na agenda habitual republicana. Trump, especialmente, pode fazer um jogo de cena político - e mandar seu genro, Jared Kushner, fazer barulho sobre como se deve cuidar dos problemas -, mas não tem a menor ideia de como agir de verdade.
E acho que em certo sentido ele sabe disso.
Considerando-se seu senso de inadequação, provavelmente estava profetizado que Trump e seus aliados, após um breve período em que pareciam estar levando a covid-19 a sério, voltariam a insistir que estava tudo bem. E pode ser que, por algum tempo, eles até mesmo convençam alguns eleitores. Mas o coronavírus, que não liga para manobras políticas, vai dar a última palavra.