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Até onde vai o limite para proteger o investidor?

"Reguladores criam regras de fácil entendimento, as instituições agem com total transparência e o investidor deve sempre buscar mais conhecimento"

Investimentos: "Outra questão são as limitações de produtos impostas ao perfil do cliente" (naruecha jenthaisong/Getty Images)
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marianamartucci

Publicado em 21 de setembro de 2020 às 14h43.

Vamos supor que você é um médico e seu paciente tem uma rara síndrome de queimaduras na água do mar. Só de colocar os pés na areia molhada, ele pode sofrer lesões. Você realiza todo o diagnóstico, esgota todos os tratamentos, mas, sem solução, se depara com duas possibilidades.

Na primeira, com total transparência, você explica ao paciente que entrar no mar para um mergulho pode trazer um prazer momentâneo, mas também pode ser extremamente prejudicial. Caso algum um dia, ele queira entrar no mar, é preciso ter a consciência de que irá se queimar. Dependendo da intensidade da reação, poderá, inclusive, morrer. Você expõe seu argumento, mas a decisão final é dele.

Já na segunda situação, você opta por algo mais simples, objetivo e fácil de lembrar. Diz que o mar é um ambiente oculto, inóspito, perigoso e que qualquer respingo é morte certa. Por isso, quando escutar o canto da sereia, tampe os ouvidos e siga a sua vida.

Coloque-se agora no lugar do paciente. Existem aqueles que dirão: “ah, mas o mar, uma beleza infinita, um refresco nos dias quentes. Meu médico pode estar errado, é preferível ir em outro profissional. Também posso ter a sorte de não acontecer nada demais comigo.” E existem os que estarão dispostos a nunca mais olhar em direção ao oceano para garantir a sua própria segurança.

O mercado financeiro apresenta dilema semelhante. Troque o paciente por cliente ou investidor, o médico por profissional de investimentos idôneo e o mar por toda e qualquer forma de investir, pode ser através de bancos, corretoras ou seguradoras.

Pense no canto da sereia como sendo todos os conteúdos disseminados nas redes sociais, fantasiados de promessas de ganhos fáceis, rápidos e sem riscos. Quanto a sorte, saiba que pode ocorrer tudo bem na primeira tentativa, ou na segunda, mas ainda vai existir a possibilidade de perder bastante dinheiro na terceira.

Não possuo os dados estatísticos para confirmar minhas observações e, talvez, até por viés na percepção encontro mais casos em que meus colegas de mercado financeiro perseguiram a segunda atitude do médico.

Frases com como “não compre casa própria, more de aluguel”, “nunca faça day-trades” ou mesmo o novo, “COEs são produtos ruins”, que parecem remeter à algum dogma escrito em pedra. Mas é importante entender a diferença de casa própria e um lar, saber que comprar e vender ações todos os dias com sucesso, como mostra o recente estudo da FGV: é mais difícil do que aquela propaganda do curso que você está pensando em comprar diz. Os COEs, se bem montados, com custo justo, podem ser uma excelente alternativa a alocação de carteira.

Outra questão são as limitações de produtos impostas ao perfil do cliente que, ao responder meia dúzia de perguntas, fica bloqueado pelas instituições de comprar mais renda variável. Ou aquela classificação de produto para “público geral”, “investidores qualificados” e “investidores profissionais”. Essa sim, a verdadeira casta da segmentação de clientes. Não estaríamos nós, como profissionais, instituições e reguladores agindo como pais que superprotegem os filhos, escondem o mundo afora e ditam o que pode ser conhecido ou vivido? Experimentar faz parte do aprendizado e é necessário.

Ao cliente, o mercado financeiro é um lugar de cicatrizes. Não interessa se é o Warren Buffet, George Soros, Howard Marks ou qualquer profissional de sucesso. Todos os seus ídolos já erraram, já tiveram dúvidas e já perderam noites de sono com as angústias das escolhas no mercado financeiro. Meus ídolos são todos cheios de erros, ainda bem. Aquele amigo seu que investe há anos e que hoje consegue entender perfeitamente qual é o melhor investimento para a vida dele, já comprou produto caro, já perdeu dinheiro em alguns day-trades e descobriu sozinho o que era um default na renda fixa.

Por isso, eu te digo: não fuja da água salgada.

O cenário ideal seria ver um tratamento adulto por parte de todos. Todos combinam de não subestimar a inteligência de ninguém. Os reguladores criam regras de fácil entendimento, as instituições e profissionais agem com total transparência e o investidor, principal interessado, deve sempre buscar mais conhecimento e manter a humildade. Haverá sempre alguém que sabe mais.

Como não é possível, a única verdade absoluta que precisamos saber é que o mar do mercado financeiro queima e nossa maior preocupação deve ser com a intensidade da queimadura. Tendo essa consciência, fica mais fácil buscar uma ajuda profissional e providenciar uma atadura.

Felipe Borges é Sócio da V10 Investimentos, e possui 16 anos de experiência com consultoria de investimentos e planejamento financeiro. Desde 2004 já ajudou a criar soluções para mais de 5.000 famílias. É formado em Economia pelo IBMEC-MG.

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Vamos supor que você é um médico e seu paciente tem uma rara síndrome de queimaduras na água do mar. Só de colocar os pés na areia molhada, ele pode sofrer lesões. Você realiza todo o diagnóstico, esgota todos os tratamentos, mas, sem solução, se depara com duas possibilidades.

Na primeira, com total transparência, você explica ao paciente que entrar no mar para um mergulho pode trazer um prazer momentâneo, mas também pode ser extremamente prejudicial. Caso algum um dia, ele queira entrar no mar, é preciso ter a consciência de que irá se queimar. Dependendo da intensidade da reação, poderá, inclusive, morrer. Você expõe seu argumento, mas a decisão final é dele.

Já na segunda situação, você opta por algo mais simples, objetivo e fácil de lembrar. Diz que o mar é um ambiente oculto, inóspito, perigoso e que qualquer respingo é morte certa. Por isso, quando escutar o canto da sereia, tampe os ouvidos e siga a sua vida.

Coloque-se agora no lugar do paciente. Existem aqueles que dirão: “ah, mas o mar, uma beleza infinita, um refresco nos dias quentes. Meu médico pode estar errado, é preferível ir em outro profissional. Também posso ter a sorte de não acontecer nada demais comigo.” E existem os que estarão dispostos a nunca mais olhar em direção ao oceano para garantir a sua própria segurança.

O mercado financeiro apresenta dilema semelhante. Troque o paciente por cliente ou investidor, o médico por profissional de investimentos idôneo e o mar por toda e qualquer forma de investir, pode ser através de bancos, corretoras ou seguradoras.

Pense no canto da sereia como sendo todos os conteúdos disseminados nas redes sociais, fantasiados de promessas de ganhos fáceis, rápidos e sem riscos. Quanto a sorte, saiba que pode ocorrer tudo bem na primeira tentativa, ou na segunda, mas ainda vai existir a possibilidade de perder bastante dinheiro na terceira.

Não possuo os dados estatísticos para confirmar minhas observações e, talvez, até por viés na percepção encontro mais casos em que meus colegas de mercado financeiro perseguiram a segunda atitude do médico.

Frases com como “não compre casa própria, more de aluguel”, “nunca faça day-trades” ou mesmo o novo, “COEs são produtos ruins”, que parecem remeter à algum dogma escrito em pedra. Mas é importante entender a diferença de casa própria e um lar, saber que comprar e vender ações todos os dias com sucesso, como mostra o recente estudo da FGV: é mais difícil do que aquela propaganda do curso que você está pensando em comprar diz. Os COEs, se bem montados, com custo justo, podem ser uma excelente alternativa a alocação de carteira.

Outra questão são as limitações de produtos impostas ao perfil do cliente que, ao responder meia dúzia de perguntas, fica bloqueado pelas instituições de comprar mais renda variável. Ou aquela classificação de produto para “público geral”, “investidores qualificados” e “investidores profissionais”. Essa sim, a verdadeira casta da segmentação de clientes. Não estaríamos nós, como profissionais, instituições e reguladores agindo como pais que superprotegem os filhos, escondem o mundo afora e ditam o que pode ser conhecido ou vivido? Experimentar faz parte do aprendizado e é necessário.

Ao cliente, o mercado financeiro é um lugar de cicatrizes. Não interessa se é o Warren Buffet, George Soros, Howard Marks ou qualquer profissional de sucesso. Todos os seus ídolos já erraram, já tiveram dúvidas e já perderam noites de sono com as angústias das escolhas no mercado financeiro. Meus ídolos são todos cheios de erros, ainda bem. Aquele amigo seu que investe há anos e que hoje consegue entender perfeitamente qual é o melhor investimento para a vida dele, já comprou produto caro, já perdeu dinheiro em alguns day-trades e descobriu sozinho o que era um default na renda fixa.

Por isso, eu te digo: não fuja da água salgada.

O cenário ideal seria ver um tratamento adulto por parte de todos. Todos combinam de não subestimar a inteligência de ninguém. Os reguladores criam regras de fácil entendimento, as instituições e profissionais agem com total transparência e o investidor, principal interessado, deve sempre buscar mais conhecimento e manter a humildade. Haverá sempre alguém que sabe mais.

Como não é possível, a única verdade absoluta que precisamos saber é que o mar do mercado financeiro queima e nossa maior preocupação deve ser com a intensidade da queimadura. Tendo essa consciência, fica mais fácil buscar uma ajuda profissional e providenciar uma atadura.

Felipe Borges é Sócio da V10 Investimentos, e possui 16 anos de experiência com consultoria de investimentos e planejamento financeiro. Desde 2004 já ajudou a criar soluções para mais de 5.000 famílias. É formado em Economia pelo IBMEC-MG.

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