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Tomás de Aquino e o Supremo

Joel Pinheiro da Fonseca Fiz meu mestrado em filosofia sobre o pensamento de Tomás de Aquino, filósofo e teólogo do século 13. Digamos que esse tema não está exatamente entre aqueles que aparecem com frequência na discussão pública brasileira. Quando aparece, contudo, é quase sempre como “S. Tomás de Aquino”, ressaltando sua canonização pela Igreja […]

STF: O relator da Operação Lava-Jato decide quais políticos com foro privilegiado viram réus e sobre o sigilo dos depoimentos colhidos nas delações / STF
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Opinião

Publicado em 28 de janeiro de 2017 às, 06h19.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h11.

Joel Pinheiro da Fonseca

Fiz meu mestrado em filosofia sobre o pensamento de Tomás de Aquino, filósofo e teólogo do século 13. Digamos que esse tema não está exatamente entre aqueles que aparecem com frequência na discussão pública brasileira. Quando aparece, contudo, é quase sempre como “S. Tomás de Aquino”, ressaltando sua canonização pela Igreja católica, que não apenas declarou que sua alma está no céu (é isso que significa a canonização) como também tornou o pensamento dele, entre muitas idas e vindas, o pensamento oficial da teologia católica, desde especulações bastante abstratas sobre a natureza de Deus e a transubstanciação até questões mais concretas sobre moralidade.

Esta semana foi exatamente desta forma que ele foi citado, quando se levantou Ives Gandra Filho como possível nome para o Supremo Tribunal Federal. A advogada Janaína Paschoal o comparou a “São Tomás”, por sua racionalidade, no twitter. O próprio Gandra Filho cita Tomás em textos, entrevistas e artigos. Sem dúvida nenhuma, quem aparece ali é o “São Tomás” (ou “Santo Tomás”, como ficou consagrado, contrariando a norma padrão), o representante de uma ortodoxia solidificada ao longo de séculos e bastante conservadora para nossos tempos.

Em seu tempo, cabe notar, Tomás era bastante liberal e até revolucionário. Lia livros de filosofia proibidos pela autoridade eclesiástica local (ele pertenceu à segunda geração de pensadores influenciados pela redescoberta de Aristóteles e de seus comentadores árabes) e foi ele próprio mal-visto logo depois de sua morte. Em questões morais, deu passos importantes para a evolução do pensamento moral católico, por exemplo, ao defender abertamente que não há nenhum pecado no prazer. O pecado residiria na busca pelo prazer acima de outros bens mais importantes. Indo contra teólogos que afirmavam o poder real sem limites, Tomás defendia a licitude do tiranicídio quando o governante não mais prezava pelo bem comum.

Mais do que isso – e esse foi o objeto da minha dissertação -, ele elaborou uma fundamentação basicamente secular para a ética humana. O homem é capaz de conhecer o bem e o mal sem saber nada a respeito de Deus ou de religião alguma, pois na origem do bem e do mal está nada mais do que sua própria felicidade. Aquilo que conduz o homem à felicidade é bom e o que o afasta dela é mau, e nosso conhecimento desses assuntos se dá pela aplicação da razão sobre a experiência humana, não lendo a Bíblia ou tendo intuições místicas. No final das contas, tudo aquilo que chamamos de ética e também de política decorre da natureza humana e é fundamentado nessa finalidade última que é a felicidade humana.

É também uma forma bastante libertadora e, se posso dizer assim, egoísta de pensar a ética, pois a preocupação primeira é com a própria felicidade – que inclui, evidentemente, o bem de muitas outras pessoas, mas nunca os coloca acima do próprio. E, por isso mesmo, é uma ética que não parte da noção de dever, ou de obrigação incondicional. Estamos sujeitos a muitas obrigações, sem dúvida, mas sempre condicionadas ao nosso bem maior; e na medida que deixam de estar, deixam de ser obrigações. O homem bom ama mais a si mesmo do que ao próximo, e mesmo no caso do amor a Deus, que deve ser o maior de todos (Tomás não estava preparado para afirmar uma heresia!), ele de alguma forma se confunde com o amor que o indivíduo tem por si mesmo, pois Deus é a felicidade suprema da alma.

Tomás é muito hábil em integrar, de forma bastante orgânica, a tradição cristã (mais focada no altruísmo e no sofrimento neste mundo) com a redescoberta de Aristóteles (da ética voltada à felicidade neste mundo), criando uma síntese que é muito mais do que a soma desses dois elementos. Essa forma de pensar a ética foi chamada – por ele mesmo – de “lei natural”. Não porque, como pensam alguns, ela se baseasse na natureza (nas plantas, nos bichos ou no que os homens em geral fazem), mas porque é conhecida e desvendada pela razão, que é a forma natural do homem conhecer o mundo. Agora, a forma específica como ele pensou a lei natural e diversas consequências suas está, na minha opinião, bastante datada.

O leitor encontrará ali muito para chocar as sensibilidades do século 21, como a condenação a práticas sexuais hoje vistas como normais. Transformar Tomás num cânone – ou, o que é pior, seguir o “tomismo”, a longa cadeia de comentadores e divulgadores (e pervertores) de seu pensamento – acaba nos prendendo a suas conclusões, muitas vezes anacrônicas, e perdendo de vista o frescor e a vida de seu modo de pensar. Assim, a escola do direito natural, que exige fundamentação ética racional para que a lei positiva tenha valor de lei (como Tomás fazia), acaba se misturando indevidamente com posições que perduram até hoje única e exclusivamente por serem parte da ortodoxia católica: o combate ao casamento homoafetivo e mesmo a condenação da legalidade do divórcio.

Na medida em que deixa de ser uma autoridade e passa a ser um interlocutor – na medida em que tiramos o “São” que mora no Céu para ficar com o homem normal -, Tomás tem muito a nos instigar. Como tentativa de dar roupagem de racionalidade pura a uma visão ideológica, contudo, é mofado e com cheiro de sacristia.