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Por que a guerra comercial de Trump é uma ameaça ao comércio global

A postura agressiva de Trump atinge o coração do sistema multilateral de comércio, a Organização Mundial do Comércio

Trump: jogo duro na defesa dos interesses americanos (Cathal McNaughton/Reuters)
Trump: jogo duro na defesa dos interesses americanos (Cathal McNaughton/Reuters)
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Opinião

Publicado em 27 de novembro de 2018 às, 05h55.

Última atualização em 27 de novembro de 2018 às, 05h55.

Como temos acompanhado pelos noticiários, Donald Trump parece estar realmente disposto a levar adiante a guerra comercial que iniciou contra a China, mirando agora outros parceiros comerciais. Até mesmo o Brasil foi ameaçado pelo presidente em seu discurso de detalhamento do Usma (acordo EUA-México-Canadá), tratado que substituirá o Nafta, alegando genericamente que o Brasil é um parceiro “duro”, que trata de forma injusta as empresas norte-americanas, não obstante o fato de, no período de 2015 até setembro de 2018, a balança comercial ter sido superavitária para o Brasil apenas em 2017, conforme números publicados pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Nessa oportunidade, o presidente reafirmou sua convicção de que a ameaça de impor tarifas tem-se mostrado benéfica para os EUA, já que foi assim que obteve vantagens com parceiros comerciais, como Coreia do Sul, Japão e Canadá.

A postura agressiva de Trump atinge também o coração do sistema multilateral de comércio, a Organização Mundial do Comércio (OMC). O presidente, como já explicitou, não tem nenhum apreço pela Organização e, muito especialmente, por seu sistema de solução de controvérsias. Quer ser ele o fiel da balança no que diz respeito aos conflitos comerciais que ele mesmo vem gerando, acreditando que basta a força para lograr êxito em sua sanha de fazer com que todos os países do mundo se curvem à vontade e aos interesses dos EUA, estejam eles de acordo ou não com as regras do sistema multilateral do comércio internacional. Trump, claramente, não é multilateralista — ele é unilateralista.

Conforme pontua Raymond Aron, a sociedade transnacional se manifesta no intercâmbio comercial, na movimentação de pessoas, nas crenças comuns e nas organizações que ultrapassam as fronteiras nacionais. Quanto mais livre o comércio e mais numerosas as instituições supranacionais, mais forte será essa sociedade. O Direito Internacional Público tem como fonte jurídica primordial os tratados, que regulamentam as relações Estado-Estado, sendo a expansão e o aprofundamento desses acordos um reflexo do aumento dos interesses coletivos da sociedade transnacional e da crescente necessidade de submeter à lei a coexistência das coletividades de cidadãos organizados politicamente em territórios distintos.

Um tratado pode ser fruto, sem dúvida, de uma imposição de força de uma (ou mais de uma) parte contratante. Como nas guerras armadas, sua concretização pode significar a vitória do Estado mais forte sobre o mais fraco. Em inúmeros casos, os países menos desenvolvidos têm seus interesses deixados para segundo plano em detrimento daqueles dos mais desenvolvidos. Ainda assim, a ferocidade com que Trump vem tratando o tema e seus parceiros comerciais demonstra que, no momento, seu objetivo é tão-somente impor a derrota aos demais países e a vitória total norte-americana na guerra lançada já no início de seu mandato, sem nenhuma preocupação com as regras e com os tratados já acordados pela sociedade transnacional. O princípio pacta sunt servanda (acordos devem ser mantidos, em latim), condição de existência do direito internacional, não parece fazer nenhum eco para o governante, na medida em que já anunciou que agirá sempre em função apenas dos interesses de seu país, ainda que isso signifique desconsiderar acordos e tratados pelos quais os EUA já se obrigaram.

O comércio é a guerra moderna mais eficaz, diferentemente da velha guerra armada. A busca pelo equilíbrio no comércio global é fundamental para evitar um conflito que pode gerar tensões mundiais bastante perigosas e prejudiciais para todos os países — inclusive, no médio prazo, para os próprios EUA.

Exatamente por esse motivo, no dia 8 de maio, 41 membros da OMC emitiram um comunicado explicitando preocupação com o aumento das tensões comerciais e do protecionismo, endossando seu apoio ao sistema multilateral regulado pela OMC. O comunicado faz um apelo aos Estados-membros para que não tomem medidas protecionistas e evitem a escalada das tensões comerciais iniciadas por Trump, as quais podem colocar em risco todo o sistema multilateral e prejudicar o comércio global. Destacaram, ainda, a importância de nomear rapidamente novos árbitros para o Órgão de Apelação da OMC, que representa a força máxima da organização, o qual, atualmente, conta com apenas três de seus sete membros em função da recusa dos EUA em renovar o mandato do árbitro Shree Baboo C. Servasing, encerrado em 30 de setembro deste ano.

No mesmo sentido, em encontro realizado nesse mesmo dia, OMC, FMI e Banco Mundial emitiram um apelo urgente pelo comércio internacional, enfatizando que, diante do cenário de conflitos comerciais e da onda de protecionismo atual, é necessário fortalecer rapidamente a OMC, agilizando as reformas do sistema multilateral que estão sendo discutidas desde 2000. Alguns pontos já foram apresentados, como aproveitar a força única da organização para propor acordos plurilaterais (participa quem quiser) em vez de aguardar acordos multilaterais que necessitam de consenso, algo que vem se mostrando impossível desde a Rodada Doha em função do grande número de membros da organização e das tantas disparidades de interesses. A exemplo do comunicado emitido pelos países membros, foi reforçada a necessidade de manter o funcionamento do Órgão de Solução de Controvérsia, atualmente bloqueado em função dos EUA, e resolver de forma mais ampla a questão dos subsídios, diante das enormes somas fornecidas sistematicamente pelo governo chinês.

Como se vê, o desafio do sistema multilateral de comércio é enorme, mas precisa ser enfrentado. Como bem pontuou o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, em 10 de setembro, numa conferência na OMC, o sistema multilateral tem, sem dúvida, várias imperfeições, mas representa o maior esforço de inúmeros governos que há 70 anos vêm trabalhando conjuntamente para buscar formas de cooperação em temas de comércio. A construção da OMC tal como é hoje é fruto de um trabalho árduo e a organização atualmente cobre algo em torno de 98% do comércio mundial, tendo acompanhado a abertura comercial e a integração de diversos mercados. Lembrou ainda que, em virtude desse trabalho e das constantes negociações ocorridas desde a década de 80, as tarifas médias foram cortadas em dois terços. O sistema ainda traz estabilidade e previsibilidade ao comércio global, mantendo-se firme mesmo em época de crises financeiras.

No entanto, a escalada da guerra comercial e a tentação protecionista podem colocar a perder tantos anos de trabalho, pondo em risco não só o sistema em si como também o crescimento do comércio global. Isso porque a ausência de um foro multilateral de negociações e, acima de tudo, de um sistema que seja capaz de impor sanções àqueles que agem de forma desleal e contrária aos acordos negociados certamente acarretará o fechamento de mercados com aumento de tarifas e barreiras não tarifárias, além da proliferação de acordos bilaterais ou plurilaterais nos quais a parte mais poderosa poderá impor sua vontade em detrimento das demais, inclusive com a não observância do princípio basilar da OMC, a Cláusula da Nação Mais Favorecida. É hora, portando, de encarar os desafios das reformas que estão na mesa, fortalecer a OMC e, assim, enfrentar o processo unilateralista lançado por Trump, o qual representa, para não variar quando se trata dele, um grande retrocesso para o mundo.

*Maria Carolina Mendonça De Barros é mestre e doutora em direito internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo