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O Paraíso Perdido do Reino Unido

Após referendo de junho de 2016, quando “sair” venceu por uma margem estreita (52% a 48%,), o Brexit se tornou uma questão profundamente polarizadora

BREXIT: a data máxima para o desembarque é 31 de janeiro. / REUTERS/Tom Nicholson (Tom Nicholson/Reuters)
BREXIT: a data máxima para o desembarque é 31 de janeiro. / REUTERS/Tom Nicholson (Tom Nicholson/Reuters)
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Opinião

Publicado em 12 de fevereiro de 2020 às, 15h43.

Princeton – Adeus, Grã-Bretanha. O Brexit aconteceu. Acabou. Alguns britânicos na rua acenam com suas bandeirinhas e os edifícios públicos estão iluminados em vermelho, branco e azul. Tendo aberto radicalmente um novo espaço para manobras políticas, o país comemora sua conquista.

Esse clima ufanista surge como uma surpresa. Após o referendo de junho de 2016, quando “Sair” venceu por uma margem relativamente estreita (52% a 48%, com uma participação de 72%), o Brexit se tornou uma questão profundamente polarizadora. A tentativa de deixar a União Europeia enfrentou muitos desafios legais e deixou o Parlamento seriamente dividido e incapaz de aprovar um acordo de saída. A população desceu às profundezas da amargura. Para observadores de todo o mundo, parecia que o Reino Unido estava se desintegrando.

Mas então veio o forte desempenho do Primeiro-Ministro Boris Johnson e dos conservadores nas eleições gerais de dezembro de 2019, que muitos interpretaram como um “deslizamento de terra” – uma mudança épica na orientação política do país. Embora os Tories (Conservadores) tenham conquistado apenas 44% dos votos (com 67% de participação), percebemos que o país passou por uma profunda transformação psicológica. O surgimento repentino de um novo consenso, disseram-nos, resolveu o problema.

Na medida em que houve uma mudança na opinião pública, isso pode simplesmente refletir frustração após mais de três anos de debate sobre o Brexit. Apelando para esse sentimento de exaustão, os Conservadores fizeram campanha em uma plataforma direta: "Faça o Brexit acontecer". A simplicidade desse slogan esconde a complexidade entorpecente das perguntas que permanecem sem resposta. A futura relação comercial com a UE incluirá serviços? Uma doutrina de “equivalência” preservará o acesso das instituições financeiras do Reino Unido ao continente? E como será administrada a fronteira irlandesa?

Mas, é claro, a mudança de humor da população também pode refletir um genuíno desejo de eliminar as restrições decorrentes da adesão à UE. Depois de anos de argumentação daqueles favoráveis à permanência que deixar a UE criaria riscos econômicos incalculáveis, Johnson cumpriu a promessa de finalmente superar o “Projeto Medo”.

Desde a década de 1970, o debate britânico sobre a Europa confrontou aqueles fixados nos benefícios econômicos da integração com aqueles preocupados com soberania política e restrições impostas por remotas autoridades supranacionais. Isso serviu para enquadrar a questão como uma de necessidade econômica versus escolha política.

A Primeira-Ministra Margaret Thatcher, no entanto, conseguiu se posicionar nos dois lados da divisão. Ela fez vigorosa campanha para a adesão do Reino Unido à Comunidade Econômica Europeia, e seu governo desempenhou papel decisivo na promoção do Ato Europeu Único de 1986, que levou a Europa rumo ao mercado livre. Até a chanceler alemã Angela Merkel entrar em cena, Thatcher foi a defensora mais conhecida da opinião de que "não há alternativa" TINA(do inglês “There Is No Alternative) à integração econômica.

E, no entanto, Thatcher consistentemente também argumentou sobre a necessidade da escolha e descreveu cada vez mais a Europa como um “superestado” que ameaçava restringir a soberania nacional, como a exercida através de processos parlamentares regulares. Em um discurso de 1988 no Colégio da Europa em Bruges, ela rejeitou o “coletivismo e o corporativismo no nível europeu”, mesmo mantendo a visão de que o “destino da Grã-Bretanha está na Europa, como parte da Comunidade”.

Após a crise financeira global de 2008, e especialmente após a crise da dívida europeia, os problemas com a TINA vieram à tona. Os gastos públicos em larga escala financiados por déficits fiscais e em conta corrente tornaram-se uma óbvia fonte de vulnerabilidade. O financiamento externo secou e os governos buscaram austeridade, que eles apresentaram como necessária para restaurar a confiança nos negócios.

Politicamente, essa mensagem fracassou. Drásticos cortes nos benefícios sociais produziram muitas vítimas e reviveram a antiga reclamação sobre falta de escolha. Após 2012, uma nova narrativa começou a se firmar, facilitada em grande parte pela flexibilização monetária, o que tornava os empréstimos mais fáceis e baratos. Sob essas circunstâncias, os gastos públicos em larga escala poderiam realmente estar se estabilizando, porque os governos que emitiam sua própria moeda jamais seriam inadimplentes. Mas no caso da UE, não havia mecanismo de governança em nível europeu capaz de colher os benefícios do dinheiro barato.

Nesse cenário, o governo Johnson reformulou o argumento econômico sobre a falta de alternativa. Explorando os efeitos destrutivos e desmoralizantes da "austeridade", prometeu enormes investimentos públicos para galvanizar e transformar as declinantes áreas industriais do norte que votaram no Brexit e alimentaram a vitória dos conservadores em dezembro. Esse aumento de gastos supostamente levará à harmonia social, porque restaurará o senso de livre escolha. Ou, como Johnson disse sobre o Brexit, "vamos assar nosso próprio bolo e vamos comê-lo".

Ao se reinventar, o Reino Unido agora está agindo como se tivesse entrado em um mundo de alternativas novas e atraentes. A liberdade de escolha significa que a Grã-Bretanha está realmente livre. Em algum momento, porém, ficará claro que, como em todas as opções, existem contrapartidas. Escolher uma opção é evitar muitas outras, e qualquer escolha pode ter implicações de longo alcance para o leque de escolhas futuras.

O Brexit pode ter levantado o moral nacional por enquanto. Mais cedo ou mais tarde, porém, realidades econômicas difíceis se reafirmarão. A descrição de John Milton de Adão e Eva após sua expulsão do Jardim do Éden raramente pareceu mais apropriada:

 “O mundo estava à sua frente, onde escolher
Seu lugar para repousar e a Providência, por seu guia:
eles de mãos dadas, com passos errantes e lentos,
Através do Éden seguiram seu caminho solitário”