O Game of Thrones tupiniquim
Estamos entrando na segunda metade da temporada da série de televisão Game of Thrones, que vai ao ar aos domingos na HBO. Nesta sexta temporada, a série começa a dar sinais de cansaço. Não há nenhuma ameaça próxima ao Trono de Ferro, os protagonistas estão distantes uns dos outros e envolvidos em histórias pouco conectadas. […]
Da Redação
Publicado em 28 de maio de 2016 às 09h36.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h55.
Estamos entrando na segunda metade da temporada da série de televisão Game of Thrones, que vai ao ar aos domingos na HBO. Nesta sexta temporada, a série começa a dar sinais de cansaço. Não há nenhuma ameaça próxima ao Trono de Ferro, os protagonistas estão distantes uns dos outros e envolvidos em histórias pouco conectadas.
O último grande desafiador do trono, Stannis Baratheon, depois de sacrificar tudo que mais amava por uma profecia de que chegaria ao poder, foi pateticamente aniquilado. Daenarys Targaryen, última sobrevivente de uma dinastia que fora deposta décadas antes, lida com inúmeros problemas em seus domínios, distantes de Westeros, o continente principal, e não tem nenhum plano imediato de retornar para o reino que foi de seu pai. Na corte real, as principais personagens estão à mercê de uma facção religiosa extremamente puritana e só agora começam a descobrir alguma maneira de virar o jogo.
Em meio a tudo isso, uma ameaça global vai se fazendo mais presente: para além da grande muralha que separa os Sete Reinos do mundo gelado e bárbaro ao Norte, exércitos de seres sobrenaturais se formam e parecem determinados a dominar tudo que estiver em seu caminho, trazendo consigo o temível inverno, que pode durar décadas. Conseguirão as diversas famílias e nações se unir a tempo para combater a ameaça não-humana, ou continuarão consumidas pelo jogo de tronos até que seja tarde demais? Esta temporada deve nos dar alguma resposta.
Até lá, assistimos, com interesse decrescente, os mesmos personagens (ou melhor, os que sobraram até aqui) em suas eternas maquinações, alianças e traições, todos tentando levar a melhor. Todos os personagens com alguma relevância estão diretamente envolvidos na luta pelo poder político e pelo destino das sociedades. Assistir à série é acompanhar as famílias nobres que, entre altos e baixos, ambicionam a supremacia política no continente.
Parece o Brasil?
É uma política que, na aparência, não se assemelha à nossa. A relação entre os grupos de poder é sempre familiar ou pessoal. Não há diferentes ideologias em jogo. Ninguém ali é neoliberal, socialista, social-democrata… E mesmo as proto-ideologias presentes – a religião, por exemplo – são usadas de maneira puramente maquiavélica e não levadas a sério por quem está no poder. Ocorre que, contra as intenções originais, essa força de massas às vezes foge ao controle e passa a dar as cartas no reino, impondo uma tirania moralista digna de pesadelo.
Nada disso está fora de lugar: Game of Thrones retrata um mundo pré-moderno, no qual o poder era sempre personalizado. Um pouco como o Brasil.
Os dias que correm são particularmente reminiscentes de um jogo de tronos. Sem dragões e magia, mas com o mesmo grau de oportunismo e a mesma ausência de escrúpulos. E não é surpresa constatar que temos marcadas semelhanças com a política pré-moderna de Westeros.
Aqui, como lá, o trabalho dos políticos, na prática, não é discutir e viabilizar propostas para melhorar a vida da população. Isso não está em jogo, e quando aparece é como capa retórica para mobilizar parte da opinião pública a participar de algo que não passa da briga de diferentes grupos de poder – unidos por laços de partido e também de família. Felizmente, por sermos uma democracia, a transição de um partido para outro pode se dar sem violência.
Não que careçamos de violência. A brutalidade de um mundo bárbaro e sem lei por vezes choca: estupros, tortura e mortes violentas são corriqueiras nos Sete Reinos. Mas aí lembramos que, sob a ilusão de um Estado de Direito e do Império da Lei, uma adolescente é estuprada por 30 homens. Homens que, nos próximos dias, fugirão da morte, seja nas mãos de populares indignados, da polícia ou de futuros companheiros de presídio.
A grande diferença do Brasil para Westeros é que, aqui, as disputas políticas não produzem violência generalizada. Nossa violência – farta – é apolítica, e o ardor com que se defende diferentes bandeiras ou partidos nas redes sociais é inversamente proporcional à disposição real de pegar em armas pela causa. Ainda bem.
Temos ainda a complicada relação da religião com a organização social. Seria a seita das andorinhas o comentário dos criadores da série sobre o cristianismo? É curioso notar que ela parece ser a fusão do zelo evangélico pela moral pública com o espírito pobrista e revolucionário da Teologia da Libertação católica.
O mundo real enfrenta algumas grandes ameaças globais que vão além dos conflitos do dia a dia, como a mudança climática e – esse mais presente na Europa e nos Estados Unidos – o medo da entrada maciça de imigrantes. Percebe-se o eco de ambos nas hordas invernais da série (literalmente chamados de “Outros” e que trazem consigo uma radical mudança climática). Aqui no Brasil, contudo, estamos alheios a tudo isso. Coxinhas e petralhas disputam a supremacia nas redes sociais e não se imagina preocupação mais elevada que a disputa Dilma x Temer.
Nenhuma guerra, nem crise de refugiados, nem desastres naturais. Os males que nos acometem são muitos, mas não são do tipo que se acumula em silêncio e de repente explode causando destruição palpável. São a composição de problemas que vão se tornando sempre um pouco piores, sem mudanças abruptas. A estagnação econômica, a disfunção das instituições, a destruição progressiva de nosso patrimônio ambiental, o analfabetismo que compromete gerações.
Para que parar de brigar agora se amanhã tudo estará mais ou menos igual? Resta torcer para que o Brasil se veja diante de alguma invasão de monstros polares sobrenaturais, o que nos forçaria, finalmente, a arrumar a casa.
(Joel Pinheiro da Fonseca)
Estamos entrando na segunda metade da temporada da série de televisão Game of Thrones, que vai ao ar aos domingos na HBO. Nesta sexta temporada, a série começa a dar sinais de cansaço. Não há nenhuma ameaça próxima ao Trono de Ferro, os protagonistas estão distantes uns dos outros e envolvidos em histórias pouco conectadas.
O último grande desafiador do trono, Stannis Baratheon, depois de sacrificar tudo que mais amava por uma profecia de que chegaria ao poder, foi pateticamente aniquilado. Daenarys Targaryen, última sobrevivente de uma dinastia que fora deposta décadas antes, lida com inúmeros problemas em seus domínios, distantes de Westeros, o continente principal, e não tem nenhum plano imediato de retornar para o reino que foi de seu pai. Na corte real, as principais personagens estão à mercê de uma facção religiosa extremamente puritana e só agora começam a descobrir alguma maneira de virar o jogo.
Em meio a tudo isso, uma ameaça global vai se fazendo mais presente: para além da grande muralha que separa os Sete Reinos do mundo gelado e bárbaro ao Norte, exércitos de seres sobrenaturais se formam e parecem determinados a dominar tudo que estiver em seu caminho, trazendo consigo o temível inverno, que pode durar décadas. Conseguirão as diversas famílias e nações se unir a tempo para combater a ameaça não-humana, ou continuarão consumidas pelo jogo de tronos até que seja tarde demais? Esta temporada deve nos dar alguma resposta.
Até lá, assistimos, com interesse decrescente, os mesmos personagens (ou melhor, os que sobraram até aqui) em suas eternas maquinações, alianças e traições, todos tentando levar a melhor. Todos os personagens com alguma relevância estão diretamente envolvidos na luta pelo poder político e pelo destino das sociedades. Assistir à série é acompanhar as famílias nobres que, entre altos e baixos, ambicionam a supremacia política no continente.
Parece o Brasil?
É uma política que, na aparência, não se assemelha à nossa. A relação entre os grupos de poder é sempre familiar ou pessoal. Não há diferentes ideologias em jogo. Ninguém ali é neoliberal, socialista, social-democrata… E mesmo as proto-ideologias presentes – a religião, por exemplo – são usadas de maneira puramente maquiavélica e não levadas a sério por quem está no poder. Ocorre que, contra as intenções originais, essa força de massas às vezes foge ao controle e passa a dar as cartas no reino, impondo uma tirania moralista digna de pesadelo.
Nada disso está fora de lugar: Game of Thrones retrata um mundo pré-moderno, no qual o poder era sempre personalizado. Um pouco como o Brasil.
Os dias que correm são particularmente reminiscentes de um jogo de tronos. Sem dragões e magia, mas com o mesmo grau de oportunismo e a mesma ausência de escrúpulos. E não é surpresa constatar que temos marcadas semelhanças com a política pré-moderna de Westeros.
Aqui, como lá, o trabalho dos políticos, na prática, não é discutir e viabilizar propostas para melhorar a vida da população. Isso não está em jogo, e quando aparece é como capa retórica para mobilizar parte da opinião pública a participar de algo que não passa da briga de diferentes grupos de poder – unidos por laços de partido e também de família. Felizmente, por sermos uma democracia, a transição de um partido para outro pode se dar sem violência.
Não que careçamos de violência. A brutalidade de um mundo bárbaro e sem lei por vezes choca: estupros, tortura e mortes violentas são corriqueiras nos Sete Reinos. Mas aí lembramos que, sob a ilusão de um Estado de Direito e do Império da Lei, uma adolescente é estuprada por 30 homens. Homens que, nos próximos dias, fugirão da morte, seja nas mãos de populares indignados, da polícia ou de futuros companheiros de presídio.
A grande diferença do Brasil para Westeros é que, aqui, as disputas políticas não produzem violência generalizada. Nossa violência – farta – é apolítica, e o ardor com que se defende diferentes bandeiras ou partidos nas redes sociais é inversamente proporcional à disposição real de pegar em armas pela causa. Ainda bem.
Temos ainda a complicada relação da religião com a organização social. Seria a seita das andorinhas o comentário dos criadores da série sobre o cristianismo? É curioso notar que ela parece ser a fusão do zelo evangélico pela moral pública com o espírito pobrista e revolucionário da Teologia da Libertação católica.
O mundo real enfrenta algumas grandes ameaças globais que vão além dos conflitos do dia a dia, como a mudança climática e – esse mais presente na Europa e nos Estados Unidos – o medo da entrada maciça de imigrantes. Percebe-se o eco de ambos nas hordas invernais da série (literalmente chamados de “Outros” e que trazem consigo uma radical mudança climática). Aqui no Brasil, contudo, estamos alheios a tudo isso. Coxinhas e petralhas disputam a supremacia nas redes sociais e não se imagina preocupação mais elevada que a disputa Dilma x Temer.
Nenhuma guerra, nem crise de refugiados, nem desastres naturais. Os males que nos acometem são muitos, mas não são do tipo que se acumula em silêncio e de repente explode causando destruição palpável. São a composição de problemas que vão se tornando sempre um pouco piores, sem mudanças abruptas. A estagnação econômica, a disfunção das instituições, a destruição progressiva de nosso patrimônio ambiental, o analfabetismo que compromete gerações.
Para que parar de brigar agora se amanhã tudo estará mais ou menos igual? Resta torcer para que o Brasil se veja diante de alguma invasão de monstros polares sobrenaturais, o que nos forçaria, finalmente, a arrumar a casa.
(Joel Pinheiro da Fonseca)