O aborto e a fronteira da moral
Joel Pinheiro da Fonseca Um jovem sofre um acidente, entra em coma profundo. O médico diz para a mãe: “ele não sente absolutamente nada agora, mas em três meses ele acordará e terá uma vida normal”. O seguro cobre a internação do jovem e a mãe tem plenas condições de fazer o necessário para cuidar […]
Publicado em 3 de dezembro de 2016 às, 06h58.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h07.
Joel Pinheiro da Fonseca
Um jovem sofre um acidente, entra em coma profundo. O médico diz para a mãe: “ele não sente absolutamente nada agora, mas em três meses ele acordará e terá uma vida normal”.
O seguro cobre a internação do jovem e a mãe tem plenas condições de fazer o necessário para cuidar dele no período. Se ela mesmo assim escolher desligar os aparelhos que mantêm o filho vivo, ela é uma assassina?
Por que com o aborto seria diferente? O feto nada sente agora, mas em três meses, quando já tiver um sistema nervoso central…
Sim, eu sei que, ao contrário dos boatos iniciais, o Supremo Tribunal Federal não legalizou o aborto no Brasil. E nem poderia. Mesmo assim, o voto do Ministro Barroso suscitou uma discussão muito difícil e que não deixou de levantar paixões de ambos os lados.
Algumas coisas não estão em dúvida: o embrião é um ser vivo da nossa espécie e não é parte do corpo da mãe. Ao mesmo tempo, quem defende o direito ao aborto não defende “eugenia” e nem, via de regra, gosta de abortos; apenas julga que puni-lo seja cruel e ineficaz.
Toda discussão sobre desigualdade de gêneros, acesso diferenciado a clínicas entre ricos e pobres, e livre escolha da mãe sequer tocam no ponto central e grande motivador de toda a discussão: trata-se de um homicídio em sentido moralmente relevante?
Sendo consistente, me parece difícil pensar em um justificativa racional do aborto que não termine por permitir também o infanticídio. Afinal, o que é que faz com que seja permitido matar um feto mas não um ser humano adulto? Um motivo comumente dado é que o feto ainda não pensa, não tem sentimentos, nem mesmo sente dor. Carece daqueles atributos mentais que fazem realmente uma pessoa. É verdade.
O problema é que um bebê recém-nascido também carece deles. Ele sente dor e tem algumas outras sensações, mas sua vida mental não é propriamente humana, não desenvolveu os atributos de uma pessoa. Ele existe, inclusive, num patamar de experiência e pensamento inferior ao de animais como um porco ou um boi, bichos que matamos sem nenhum constrangimento moral (exceto, é claro, os veganos).
Portanto, se é o estado atual de consciência do ser que determina quem pode ou não ser morto, conclui-se que não só o aborto é permissível, como também que matar um bebê é moralmente equivalente a matar um boi para o churrasco.
Alternativamente, pode-se dizer que o que dá ao recém-nascido um status moral diferente dos outros bichos não é seu estado atual, o desenvolvimento psicológico e mental que ele já atingiu, e sim o potencial que ele guarda. Atualmente, ele é menos que um cachorro, mas carrega consigo um potencial que, se não for barrado em seu desenvolvimento, chegará ao estágio de uma pessoa. Também é verdade. Contudo, o feto e mesmo o embrião têm o mesmo exato potencial. Portanto, se são as potencialidades de nossa natureza que nos obrigam a tratar um bebê diferentemente dos outros bichos, o mesmo tratamento, a mesma proteção, terá que ser logicamente estendida ao feto.
Algumas defesas da licitude do aborto vão por outra via. Argumenta-se que o corpo é da mulher, e que ela pode usá-lo como quiser. Então é irrelevante discutir se o feto “é ser humano”, pois seja como for é direito da mãe expulsá-lo.
Mas o mesmo argumento se aplica a um bebê já nascido que depende da mãe para sobreviver. Pode uma mãe negar o leite ao filho, ou ainda abandoná-lo fora de casa – mesmo sabendo que não há ninguém mais que possa cuidar dele e que ele com certeza morrerá? “Meu peito, minhas regras”, “minha casa, minhas regras.”
Se o feto é um parasita interno (como uma lombriga), o recém-nascido é um parasita externo (como um sanguessuga). Se não houver mais ninguém para cuidar de seu filho, ou se for custoso encontrar uma alternativa, pode a mãe simplesmente matá-lo? A maioria das pessoas responderia que não, contrariando a lógica do “meu corpo, minhas regras”.
***
Posso estar parecendo um opositor ferrenho da legalização do aborto. Não sou. O outro lado também é problemático.
Por outro lado, os contrários ao aborto argumentam que a vida do feto – e até do embrião – é uma vida humana tão valiosa quanto todas as outras.
Sabemos, contudo, que uma grande proporção dos embriões morre naturalmente nos primeiros estágios de desenvolvimento. Até um terço das gestações termina em aborto espontâneo. Se houvesse alguma grande epidemia matando 30% das crianças, a humanidade inteira não pouparia esforços para curá-la e prevenir essa catástrofe. Se os anti-abortistas realmente vissem o embrião como uma vida humana, também não poupariam esforços e doações para remediá-la.
No entanto, não vemos nenhuma movimentação ou campanha relevante nessa direção. Falhas no processo de nidação (implantação do zigoto no útero) continuam sendo uma das causas principais de morte de zigotos, e ninguém parece empenhado em prevenir essas mortes em gestações naturais. Portanto, mesmo os opositores da legalização do aborto não acreditam mesmo que o embrião já tem o mesmo valor de uma pessoa.
Por fim, a oposição ao aborto está muito ligada a uma metafísica que, conforme a ciência avança, vai se tornando obsoleta. Quando começa o indivíduo vivo? Um embrião nos primeiros estágios ainda pode se dividir em dois ou mais gêmeos univitelinos. Não temos propriamente um indivíduo ali, e sim uma massa viva indistinta. Com o avanço da tecnologia – por exemplo, células tronco – essa fronteira ficará ainda mais tênue. E se de uma célula qualquer do corpo for possível desenvolver um ser humano completo? Teremos que passar a tratar todas as células como embriões?
A morte do feto é uma morte. Mas uma morte de alguém que não sente, não pensa, não tem memória e nem vínculos afetivos. Para uma mãe que já se relaciona com o filho dentro de si, é impensável. Para outra que jamais quis engravidar, é um apenas um problema.
***
Para mim, o aborto é uma questão que nos leva à fronteira do nosso pensamento moral, revelando que não existe uma posição moral objetivamente superior às outras. Algum nível de contradição ou arbitrariedade está sempre presente. E como a tenacidade dos dois lados é compreensivelmente alta, fico com a mais insatisfatória das soluções: o compromisso. Libere-se o aborto até os três meses de gestação. Não se estará matando verdadeiros bebês não-nascidos mas já desenvolvidos, e nem obrigando mulheres a levar a gravidez indesejada no início. Não é logicamente consistente, é arbitrária em alto grau, mas é a única que consegue, para os dois lados, não ser o pior caso possível. Que cada um escolha, dentro dessa restrição, o que lhe parecer melhor, e encare as consequências de suas escolhas.