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Não existe Europa sem Estado de Direito

As crises econômicas não têm sido boas para a integração europeia. Na verdade, elas tendem a dividir os europeus

EUROPA: os líderes europeus concordaram em alocar apenas 390 bilhões de euros do pacote de emergência de 750 bilhões de euros. (Gonzalo Fuentes/Reuters)
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felipegiacomelli

Publicado em 3 de agosto de 2020 às 15h19.

PRINCETON – A reunião de cinco dias do Conselho Europeu para elaboração de orçamento para 2021-2027 e um pacote de gastos de emergência para o COVID-19 teve todas as características da Cúpula do Euro: longas discussões noturnas; ameaças de saída sem acordo por parte de alguns líderes; e a pressão franco-alemã para um acordo. Naturalmente, tudo foi concluído com um insatisfatório compromisso.

Especificamente, os líderes europeus concordaram em alocar apenas 390 bilhões de euros (US$ 457 bilhões) do pacote de emergência de 750 bilhões de euros na forma de doações e os restantes 360 bilhões de euros em empréstimos, porque os “quatro frugais” (Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia) insistiram que o valor teria que começar com o número três. Seria esse arranjo melhor que o último insatisfatório compromisso na lenta marcha da Europa em direção a uma integração mais profunda?

Durante setenta anos, o mantra da Europa é que ela cresce em resposta a crises. O primeiro movimento para a integração na década de 1950 foi alimentado pela Guerra Fria. A integração monetária do início dos anos 90 ocorreu em meio ao divisor de águas geopolítico causado pelo fim daquele longo conflito. Mais recentemente, muitos esperavam que todas as perturbações causadas por: imigração, mudança climática, revanchismo russo, eleição de Donald Trump como presidente dos EUA e Brexit gerassem novo impulso para um projeto europeu que parecia estar perdendo força.

Aparentemente, foi necessária uma crise econômica induzida por uma pandemia, para que isso ocorresse. Mas, de um modo geral, as crises econômicas não têm sido boas para a integração europeia. Na verdade, elas tendem a dividir os europeus, devido às divisões sobre o que causou o problema e o que fazer a respeito. Entre 2010 e 2012, com as tensões aumentando entre norte e sul, e depois entre leste e oeste, o euro quase entrou em colapso, ameaçando derrubar toda a União Europeia.

Ao contrário dessa crise, a pandemia não é obviamente causada por nenhum erro político específico (pelo menos, não por parte dos europeus). Como a incidência, a disseminação e os efeitos econômicos do vírus são mais ou menos aleatórios, há um argumento plausível de considerar solidariedade como meio de seguro coletivo. Portanto, uma nova forma de mutualização da dívida está no centro do novo acordo. Pela primeira vez, a própria UE emitirá dívidas, que serão respaldadas pelos governos dos estados membros e pagas por meio de um mecanismo fiscal conjunto, patrocinado pela Comissão Europeia.

Assim, o acordo cria um precedente e provavelmente tornará os ativos em euro mais atraentes para os investidores que buscam um porto seguro que não seja o dólar. A Europa parece ter atingido algo como um "momento hamiltoniano". Em 1790, o primeiro secretário do Tesouro dos EUA, Alexander Hamilton, argumentou com sucesso que o governo federal dos EUA deveria assumir as dívidas dos estados contraídas durante a Guerra da Independência e depois quitá-las com a receita das tarifas de importação.

No entanto, o acordo de compromisso da UE deixou muito a desejar para aqueles que pediram subsídios e empréstimos da UE com mais restrições. Essas propostas imediatamente despertaram dolorosas lembranças da crise do euro, quando os governos nacionais afetados pela crise procuraram um grupo externo sobre o qual pudessem imputar a responsabilidade. Isso levou a um duplo descrédito: os governos nacionais pareciam incapazes e covardes, e o terceiro – seja Alemanha ou  "Europa" – tornou-se a personificação da crueldade e da vingança.

Mesmo antes da recente cúpula, era amplamente reconhecido que a antiga forma de condicionalidade (crise do euro) não seria apropriada. O vice-primeiro-ministro espanhol Pablo Iglesias, do partido de esquerda Podemos, elogiou o acordo por não incluir nenhum "homem de preto" para impedir a aplicação de austeridade ou outras condições. O Mecanismo Europeu de Estabilidade, depois de criado com grande custo político em 2012, não se apresentou nas últimas discussões.

Mas as propostas de condicionalidade desta vez foram menos sobre economia do que sobre política. A ideia era que aqueles que recebessem fundos da UE deveriam defender o Estado de Direito, a independência judicial, a liberdade de imprensa e a liberdade acadêmica. Como o então presidente do Conselho Europeu Donald Tusk apontou no ano passado, "não existe Europa sem Estado de direito". Mas, no final, os governos não liberais da Polônia e da Hungria conseguiram grandes quantias sem nenhuma garantia de que seriam impedidos de corroer ainda mais as instituições democráticas de seus países.

Historicamente, aplicar o estado de direito dentro de grandes estruturas federais raramente tem sido fácil. Considere-se os Estados Unidos, onde a ousada jogada financeira de Hamilton foi apenas o começo. Durante a era da reconstrução após a Guerra Civil, o Exército da União, sob o presidente Ulysses S. Grant, garantiu o direito de voto e outros direitos civis dos ex-escravos na antiga Confederação. Em 1957, a Guarda Nacional instituiu a desagregação de escolas no Arkansas. E em 1963, o Presidente John F. Kennedy enviou a Guarda Nacional para a Universidade do Alabama.

Controversamente, o governo Trump agora está empregando agentes federais armados contra manifestantes, desafiando os desejos dos governos estaduais e locais. Soldados em uniformes verdes, sem identificação, apareceram nas ruas de Portland e Seattle, e o Secretário de Defesa dos EUA tem se referido às ruas americanas como um "campo de batalha". A turbulência atual dos Estados Unidos é exatamente o que os europeus querem evitar.

De qualquer forma, o cenário da Guarda Nacional é inimaginável na Europa moderna. Não haverá tropas europeias atuando em defesa da liberdade acadêmica ou dos direitos LGBT em nenhum estado membro. Ninguém está pedindo a aplicação ao estilo Grant do momento hamiltoniano, e ninguém nega que homens de verde sejam uma ameaça maior do que homens de preto.

A contemporânea governança europeia se baseia na persuasão e no discurso racional. E, no entanto, a única maneira de fazer uma Europa civilizada funcionar é aplicar a condicionalidade política. A defesa dos valores europeus exige que violações sistêmicas sejam punidas, tanto pela suspensão do direito de voto daqueles infratores no processo de tomada de decisões da UE, quanto pela retenção de pagamentos da UE.

A Europa agora será construída através de transferências fiscais e das obrigações que elas criam. Mas, em última análise, Tusk está certo: não pode haver União Europeia a menos que todos os seus membros sigam os mesmos padrões.Parte superior do formulário.

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PRINCETON – A reunião de cinco dias do Conselho Europeu para elaboração de orçamento para 2021-2027 e um pacote de gastos de emergência para o COVID-19 teve todas as características da Cúpula do Euro: longas discussões noturnas; ameaças de saída sem acordo por parte de alguns líderes; e a pressão franco-alemã para um acordo. Naturalmente, tudo foi concluído com um insatisfatório compromisso.

Especificamente, os líderes europeus concordaram em alocar apenas 390 bilhões de euros (US$ 457 bilhões) do pacote de emergência de 750 bilhões de euros na forma de doações e os restantes 360 bilhões de euros em empréstimos, porque os “quatro frugais” (Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia) insistiram que o valor teria que começar com o número três. Seria esse arranjo melhor que o último insatisfatório compromisso na lenta marcha da Europa em direção a uma integração mais profunda?

Durante setenta anos, o mantra da Europa é que ela cresce em resposta a crises. O primeiro movimento para a integração na década de 1950 foi alimentado pela Guerra Fria. A integração monetária do início dos anos 90 ocorreu em meio ao divisor de águas geopolítico causado pelo fim daquele longo conflito. Mais recentemente, muitos esperavam que todas as perturbações causadas por: imigração, mudança climática, revanchismo russo, eleição de Donald Trump como presidente dos EUA e Brexit gerassem novo impulso para um projeto europeu que parecia estar perdendo força.

Aparentemente, foi necessária uma crise econômica induzida por uma pandemia, para que isso ocorresse. Mas, de um modo geral, as crises econômicas não têm sido boas para a integração europeia. Na verdade, elas tendem a dividir os europeus, devido às divisões sobre o que causou o problema e o que fazer a respeito. Entre 2010 e 2012, com as tensões aumentando entre norte e sul, e depois entre leste e oeste, o euro quase entrou em colapso, ameaçando derrubar toda a União Europeia.

Ao contrário dessa crise, a pandemia não é obviamente causada por nenhum erro político específico (pelo menos, não por parte dos europeus). Como a incidência, a disseminação e os efeitos econômicos do vírus são mais ou menos aleatórios, há um argumento plausível de considerar solidariedade como meio de seguro coletivo. Portanto, uma nova forma de mutualização da dívida está no centro do novo acordo. Pela primeira vez, a própria UE emitirá dívidas, que serão respaldadas pelos governos dos estados membros e pagas por meio de um mecanismo fiscal conjunto, patrocinado pela Comissão Europeia.

Assim, o acordo cria um precedente e provavelmente tornará os ativos em euro mais atraentes para os investidores que buscam um porto seguro que não seja o dólar. A Europa parece ter atingido algo como um "momento hamiltoniano". Em 1790, o primeiro secretário do Tesouro dos EUA, Alexander Hamilton, argumentou com sucesso que o governo federal dos EUA deveria assumir as dívidas dos estados contraídas durante a Guerra da Independência e depois quitá-las com a receita das tarifas de importação.

No entanto, o acordo de compromisso da UE deixou muito a desejar para aqueles que pediram subsídios e empréstimos da UE com mais restrições. Essas propostas imediatamente despertaram dolorosas lembranças da crise do euro, quando os governos nacionais afetados pela crise procuraram um grupo externo sobre o qual pudessem imputar a responsabilidade. Isso levou a um duplo descrédito: os governos nacionais pareciam incapazes e covardes, e o terceiro – seja Alemanha ou  "Europa" – tornou-se a personificação da crueldade e da vingança.

Mesmo antes da recente cúpula, era amplamente reconhecido que a antiga forma de condicionalidade (crise do euro) não seria apropriada. O vice-primeiro-ministro espanhol Pablo Iglesias, do partido de esquerda Podemos, elogiou o acordo por não incluir nenhum "homem de preto" para impedir a aplicação de austeridade ou outras condições. O Mecanismo Europeu de Estabilidade, depois de criado com grande custo político em 2012, não se apresentou nas últimas discussões.

Mas as propostas de condicionalidade desta vez foram menos sobre economia do que sobre política. A ideia era que aqueles que recebessem fundos da UE deveriam defender o Estado de Direito, a independência judicial, a liberdade de imprensa e a liberdade acadêmica. Como o então presidente do Conselho Europeu Donald Tusk apontou no ano passado, "não existe Europa sem Estado de direito". Mas, no final, os governos não liberais da Polônia e da Hungria conseguiram grandes quantias sem nenhuma garantia de que seriam impedidos de corroer ainda mais as instituições democráticas de seus países.

Historicamente, aplicar o estado de direito dentro de grandes estruturas federais raramente tem sido fácil. Considere-se os Estados Unidos, onde a ousada jogada financeira de Hamilton foi apenas o começo. Durante a era da reconstrução após a Guerra Civil, o Exército da União, sob o presidente Ulysses S. Grant, garantiu o direito de voto e outros direitos civis dos ex-escravos na antiga Confederação. Em 1957, a Guarda Nacional instituiu a desagregação de escolas no Arkansas. E em 1963, o Presidente John F. Kennedy enviou a Guarda Nacional para a Universidade do Alabama.

Controversamente, o governo Trump agora está empregando agentes federais armados contra manifestantes, desafiando os desejos dos governos estaduais e locais. Soldados em uniformes verdes, sem identificação, apareceram nas ruas de Portland e Seattle, e o Secretário de Defesa dos EUA tem se referido às ruas americanas como um "campo de batalha". A turbulência atual dos Estados Unidos é exatamente o que os europeus querem evitar.

De qualquer forma, o cenário da Guarda Nacional é inimaginável na Europa moderna. Não haverá tropas europeias atuando em defesa da liberdade acadêmica ou dos direitos LGBT em nenhum estado membro. Ninguém está pedindo a aplicação ao estilo Grant do momento hamiltoniano, e ninguém nega que homens de verde sejam uma ameaça maior do que homens de preto.

A contemporânea governança europeia se baseia na persuasão e no discurso racional. E, no entanto, a única maneira de fazer uma Europa civilizada funcionar é aplicar a condicionalidade política. A defesa dos valores europeus exige que violações sistêmicas sejam punidas, tanto pela suspensão do direito de voto daqueles infratores no processo de tomada de decisões da UE, quanto pela retenção de pagamentos da UE.

A Europa agora será construída através de transferências fiscais e das obrigações que elas criam. Mas, em última análise, Tusk está certo: não pode haver União Europeia a menos que todos os seus membros sigam os mesmos padrões.Parte superior do formulário.

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