Exame Logo

Muito tempo atrás, numa galáxia…

Joel Pinheiro da Fonseca  …muito distante, era lançado o primeiro filme daquilo que se tornaria uma das séries mais bem-sucedidas da história do cinema. Star Wars: Uma Nova Esperança, de 1977. O primeiro filme e suas duas continuações originais revolucionaram nossas expectativas para filmes de aventura espacial e nos legou uma nova mitologia, baseada nos arquétipos […]

(Star Wars/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 7 de janeiro de 2017 às 07h30.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h33.

Joel Pinheiro da Fonseca

…muito distante, era lançado o primeiro filme daquilo que se tornaria uma das séries mais bem-sucedidas da história do cinema. Star Wars: Uma Nova Esperança, de 1977. O primeiro filme e suas duas continuações originais revolucionaram nossas expectativas para filmes de aventura espacial e nos legou uma nova mitologia, baseada nos arquétipos da jornada do herói — descrita pelo especialista em mitologia Joseph Campbell e presente em grande parte das narrativas tradicionais ao redor do globo. Está nos cinemas agora o oitavo filme da série, Star Wars: Rogue One, uma história que se passa — na cronologia interna da trama — logo antes do Uma Nova Esperança.

Uma obra de arte é sempre muito mais do que os valores e as crenças que a inspiram. Desmerecer A Divina Comédia por ser católica, Madame Bovary por ser imoral (crítica comum no século 19) ou o poeta Pablo Neruda por ser socialista é deixar passar por entre os dedos justamente o que a arte tem a nos oferecer: um mergulho em um universo criado segundo os juízos de valor e crenças do artista. Dito isso, é claro que analisar qual o tipo de crença e de valor embutido em cada obra é também um esforço válido. E é o que farei aqui com Star Wars, sem entrar no mérito artístico ou estético.

Star Wars tem uma clara ideologia política. Desde a trilogia original, assistimos à guerra entre o Império – que representa as forças do mal – e os heróis da Aliança Rebelde. O correlato com o momento histórico em que o filme foi lançado é óbvio: a rivalidade entre Ocidente e a União Soviética . Ao mesmo tempo, passa longe de quaisquer considerações econômicas de capitalismo versus socialismo. Os valores em jogo parecem ser exclusivamente entre democracia e direitos individuais contra autocracia.

A segunda trilogia (iniciada com A Ameaça Fantasma, de 1999), que narra a queda do sistema político republicano anterior ao domínio imperial, confirma essa leitura. E foi a partir dela que o descolamento entre a série e o mundo tornou-se evidente. A pura democracia provou ser algo pouco atraente, recebendo inclusive menos atenção do que os conflitos pessoais e sentimentais do protagonista Anakin Skywalker, que se tornaria o temível Darth Vader. Apesar da decepção que foi para os fãs descobrirem que o senhor das trevas não passava de um adolescente revoltado, ele estava solidamente fixado como o grande objeto de interesse dos espectadores.

A série de George Lucas parece estar fixa em valores que ficaram perdidos naquela galáxia distante que foram os anos 90: democracia, amor universal, a inevitabilidade do credo progressista (Natalie Portman não está ali à toa). Na falta do velho Império, os perigos da “direita”, da intolerância. Ela só falhou gravemente em entender de onde viria o perigo: não, como antigamente, dos generais ou de uma elite poderosíssima, mas das próprias populações governadas.

Em Rogue One essa visão de mundo chega ao paroxismo. E embora se trate de um bom filme (eficaz em entreter e cativar), a obviedade dos valores e dos posicionamentos políticos beira o cômico. Para quem não assistiu segue minha sinopse do que passa na tela:

2016 EC. O universo está em crise. O Império (Partido Republicano), composto exclusivamente de homens brancos velhos e heterossexuais, domina toda a galáxia. Sob pretextos fraudulentos, enganam o Senado (Partido Democrata, União Europeia, ONU) e estão prontos para usar suas queridas Armas de Destruição em Massa.

Jyn Erso é uma jovem mochileira europeia nórdica, democrata e liberal, ou seja, uma salvadora do mundo, mas ainda apolítica, não conscientizada de sua missão. Abandonou o berço de ouro (seu pai fora um político europeu aliado ao imperialismo ianque) para viver a vida em seus próprios termos.

Jyn é raptada pelos rebeldes para entrar em contato com seu velho professor universitário, o dissidente Saw Guerrera, radical demais, que está liderando a resistência jihadista em Aleppo (os Rebeldes não aprovam atos de terrorismo em nome de Alá).

Os Estados Unidos (na figura de um lacaio misteriosamente parecido com Michel Temer) aniquilam Aleppo e Jyn se transformam no novo rosto do socialismo global.

Na Aliança Rebelde, ela encontra pessoas de todas as sexualidades, gêneros e etnias. Brancos, negros, árabes, orientais, ETs, gays (robôs). Os comandantes são uma Mulher de Cabelo Curto (Parlamento Europeu) e um latino-americano (Foro de São Paulo). Sua trupe inclui um namorado mediterrâneo, um sábio budista e um palestino foragido. É lindo. Mas estão todos desmotivados e marcados pelo passado de violência.

Jyn reacende a esperança na utopia naqueles corações, fazendo-os deixar de lado o terrorismo. Velhos combatentes das FARCs, da ANC, da Frente de Libertação Palestina, do IRA e do Grupo Baader-Meinhof têm novamente uma razão para sonhar: o socialismo democrático, plural e fronteiras abertas do século 21.

A missão final se dá na Base de Guantánamo, coração informacional do Império. Apesar de completá-la, Jyn e seus amigos morrem na explosão nuclear. Donald Trump foi eleito, o Brexit passou, a direita está em alta.

A semente foi plantada e aguarda o momento certo para brotar. Só tem um problema. Mesmo com todos os bons valores em cena, a plateia que estava no cinema esperou o filme inteiro para ver uma coisa só: Darth Vader entrar em ação. E vibrou.

Voltemos ao mundo real. Em termos de Star Wars, em 2017 o mundo se distanciará do lado branco da Força (ainda é esse o termo?) em direção ao lado negro. Sai pluralismo, democracia e instituições, entra tribalismo, força bruta e exercício arbitrário do poder.

E faz todo o sentido. As chatices do Senado no Episódio 1 ( A Ameaça Fantasma ), o discurso certinho da Rainha Amigdala, o bom-mocismo ingênuo do Luke, a sabedoria etérea dos jedi: nada disso conquista mais o coração dos fãs. Simplesmente não é páreo para o lado negro, para a vocação trágica de um Darth Vader ou um Kylo Ren, e para o apelo da vontade de poder que jazia latente nos anos 90.

Assim, o lado branco está fora. Hillary Clinton perdeu, a União Europeia está com os dias contados. Isso não é bom, não. Sofreremos desnecessariamente com mais essa ascensão do lado negro. Mas é importante não cometer os mesmos erros. Lembremos sempre que ninguém nunca se deixou empolgar com o Luke; nem mesmo a Princesa Leia! A única escolha para nós é entre Darth Vader e Han Solo.

Veja também

Joel Pinheiro da Fonseca

…muito distante, era lançado o primeiro filme daquilo que se tornaria uma das séries mais bem-sucedidas da história do cinema. Star Wars: Uma Nova Esperança, de 1977. O primeiro filme e suas duas continuações originais revolucionaram nossas expectativas para filmes de aventura espacial e nos legou uma nova mitologia, baseada nos arquétipos da jornada do herói — descrita pelo especialista em mitologia Joseph Campbell e presente em grande parte das narrativas tradicionais ao redor do globo. Está nos cinemas agora o oitavo filme da série, Star Wars: Rogue One, uma história que se passa — na cronologia interna da trama — logo antes do Uma Nova Esperança.

Uma obra de arte é sempre muito mais do que os valores e as crenças que a inspiram. Desmerecer A Divina Comédia por ser católica, Madame Bovary por ser imoral (crítica comum no século 19) ou o poeta Pablo Neruda por ser socialista é deixar passar por entre os dedos justamente o que a arte tem a nos oferecer: um mergulho em um universo criado segundo os juízos de valor e crenças do artista. Dito isso, é claro que analisar qual o tipo de crença e de valor embutido em cada obra é também um esforço válido. E é o que farei aqui com Star Wars, sem entrar no mérito artístico ou estético.

Star Wars tem uma clara ideologia política. Desde a trilogia original, assistimos à guerra entre o Império – que representa as forças do mal – e os heróis da Aliança Rebelde. O correlato com o momento histórico em que o filme foi lançado é óbvio: a rivalidade entre Ocidente e a União Soviética . Ao mesmo tempo, passa longe de quaisquer considerações econômicas de capitalismo versus socialismo. Os valores em jogo parecem ser exclusivamente entre democracia e direitos individuais contra autocracia.

A segunda trilogia (iniciada com A Ameaça Fantasma, de 1999), que narra a queda do sistema político republicano anterior ao domínio imperial, confirma essa leitura. E foi a partir dela que o descolamento entre a série e o mundo tornou-se evidente. A pura democracia provou ser algo pouco atraente, recebendo inclusive menos atenção do que os conflitos pessoais e sentimentais do protagonista Anakin Skywalker, que se tornaria o temível Darth Vader. Apesar da decepção que foi para os fãs descobrirem que o senhor das trevas não passava de um adolescente revoltado, ele estava solidamente fixado como o grande objeto de interesse dos espectadores.

A série de George Lucas parece estar fixa em valores que ficaram perdidos naquela galáxia distante que foram os anos 90: democracia, amor universal, a inevitabilidade do credo progressista (Natalie Portman não está ali à toa). Na falta do velho Império, os perigos da “direita”, da intolerância. Ela só falhou gravemente em entender de onde viria o perigo: não, como antigamente, dos generais ou de uma elite poderosíssima, mas das próprias populações governadas.

Em Rogue One essa visão de mundo chega ao paroxismo. E embora se trate de um bom filme (eficaz em entreter e cativar), a obviedade dos valores e dos posicionamentos políticos beira o cômico. Para quem não assistiu segue minha sinopse do que passa na tela:

2016 EC. O universo está em crise. O Império (Partido Republicano), composto exclusivamente de homens brancos velhos e heterossexuais, domina toda a galáxia. Sob pretextos fraudulentos, enganam o Senado (Partido Democrata, União Europeia, ONU) e estão prontos para usar suas queridas Armas de Destruição em Massa.

Jyn Erso é uma jovem mochileira europeia nórdica, democrata e liberal, ou seja, uma salvadora do mundo, mas ainda apolítica, não conscientizada de sua missão. Abandonou o berço de ouro (seu pai fora um político europeu aliado ao imperialismo ianque) para viver a vida em seus próprios termos.

Jyn é raptada pelos rebeldes para entrar em contato com seu velho professor universitário, o dissidente Saw Guerrera, radical demais, que está liderando a resistência jihadista em Aleppo (os Rebeldes não aprovam atos de terrorismo em nome de Alá).

Os Estados Unidos (na figura de um lacaio misteriosamente parecido com Michel Temer) aniquilam Aleppo e Jyn se transformam no novo rosto do socialismo global.

Na Aliança Rebelde, ela encontra pessoas de todas as sexualidades, gêneros e etnias. Brancos, negros, árabes, orientais, ETs, gays (robôs). Os comandantes são uma Mulher de Cabelo Curto (Parlamento Europeu) e um latino-americano (Foro de São Paulo). Sua trupe inclui um namorado mediterrâneo, um sábio budista e um palestino foragido. É lindo. Mas estão todos desmotivados e marcados pelo passado de violência.

Jyn reacende a esperança na utopia naqueles corações, fazendo-os deixar de lado o terrorismo. Velhos combatentes das FARCs, da ANC, da Frente de Libertação Palestina, do IRA e do Grupo Baader-Meinhof têm novamente uma razão para sonhar: o socialismo democrático, plural e fronteiras abertas do século 21.

A missão final se dá na Base de Guantánamo, coração informacional do Império. Apesar de completá-la, Jyn e seus amigos morrem na explosão nuclear. Donald Trump foi eleito, o Brexit passou, a direita está em alta.

A semente foi plantada e aguarda o momento certo para brotar. Só tem um problema. Mesmo com todos os bons valores em cena, a plateia que estava no cinema esperou o filme inteiro para ver uma coisa só: Darth Vader entrar em ação. E vibrou.

Voltemos ao mundo real. Em termos de Star Wars, em 2017 o mundo se distanciará do lado branco da Força (ainda é esse o termo?) em direção ao lado negro. Sai pluralismo, democracia e instituições, entra tribalismo, força bruta e exercício arbitrário do poder.

E faz todo o sentido. As chatices do Senado no Episódio 1 ( A Ameaça Fantasma ), o discurso certinho da Rainha Amigdala, o bom-mocismo ingênuo do Luke, a sabedoria etérea dos jedi: nada disso conquista mais o coração dos fãs. Simplesmente não é páreo para o lado negro, para a vocação trágica de um Darth Vader ou um Kylo Ren, e para o apelo da vontade de poder que jazia latente nos anos 90.

Assim, o lado branco está fora. Hillary Clinton perdeu, a União Europeia está com os dias contados. Isso não é bom, não. Sofreremos desnecessariamente com mais essa ascensão do lado negro. Mas é importante não cometer os mesmos erros. Lembremos sempre que ninguém nunca se deixou empolgar com o Luke; nem mesmo a Princesa Leia! A única escolha para nós é entre Darth Vader e Han Solo.

Acompanhe tudo sobre:Exame Hoje

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se