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Menos Bolsa Família, mais Renda Mínima

Milhares de jovens evitam aceitar empregos formais ou abrir pequenos negócios por medo de perder benefícios

 (joelfotos/Pixabay/Divulgação)

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Vinicius Lummertz
Vinicius Lummertz

Ex-ministro do Turismo (Governo Temer), cientista político pela Universidade Americana de Paris, Sênior Fellow do Milken Institute (EUA)

Publicado em 9 de dezembro de 2025 às 07h48.

O Brasil vive um paradoxo que se arrasta há décadas. Construímos uma rede de proteção social robusta, mas não fomos capazes de transformá-la em mobilidade social. Mais de 56 milhões de brasileiros recebem algum benefício federal e 21,6 milhões de famílias dependem do Bolsa Família. O programa foi decisivo para reduzir a pobreza extrema, mas se tornou símbolo de permanência.

O país protege, mas não projeta. Por isso é necessário afirmar com clareza desde o início que chegou a hora de substituir o signo do Bolsa Família pelo signo da renda mínima, capaz de proteger e, sobretudo, impulsionar os brasileiros para a frente. A compreensão desse desafio exige recuperar a origem mais sofisticada da política social brasileira. No governo Fernando Henrique Cardoso, sob liderança de Ruth Cardoso, o Bolsa-Escola era parte de uma arquitetura maior composta pelo Comunidade Solidária e pelo Comunidade Ativa.

O objetivo não era apenas garantir renda vinculada à escola, mas criar caminhos reais de saída da dependência. A visão de Ruth Cardoso era inequívoca. Proteção não deveria significar imobilização. Assistência deveria estar ligada à ascensão. Toda porta de entrada deveria ser acompanhada de uma porta de saída. O Comunidade Ativa, coordenado nacionalmente por Augusto de Franco, mobilizou 2.500 extensionistas urbanos com apoio da ONU e do Sebrae Nacional. A principal tecnologia social utilizada era o PRODER, desenvolvido por Hans Luzny, do MIT, no Sebrae de Santa Catarina. Microiniciativas produtivas nasciam das vocações locais e se transformavam em renda e autonomia.

Como dirigente do Sebrae SC e do Sebrae Nacional, testemunhei diretamente a eficácia dessa abordagem. Era uma política social que acreditava na capacidade das pessoas, não na sua perpetuação em programas de transferência. O governo Lula tentou inicialmente implantar o Fome Zero, baseado na distribuição de alimentos em larga escala. A logística mostrou-se inviável. Ao reconhecer isso, o governo Lula inteligente rebatizou o Bolsa-Escola como Bolsa Família e ampliou o benefício, mas abandonou a lógica da Comunidade Solidária e do Comunidade Ativa.

A visão sindical dominante da época não incorporava a autonomia como princípio organizador. Criou-se um regime de contenção social e não de projeção social. Este é o limite estrutural que persiste até hoje. E é necessário repeti-lo com clareza. O país não pode continuar orientado pelo signo do Bolsa Família. Precisa avançar para o signo da renda mínima propulsora. Os dados mostram a urgência dessa mudança. O Brasil tem 15,4 milhões de MEIs e mais de 21 milhões de micro e pequenas empresas, mas convive com cerca de 39 por cento de informalidade.

Milhares de jovens evitam aceitar empregos formais ou abrir pequenos negócios por medo de perder benefícios. O sistema penaliza quem tenta caminhar para frente e protege quem permanece parado. Nenhuma política social pode funcionar sob essa lógica. Nesse contexto, a contribuição de Guilherme Afif Domingos foi decisiva. O Simples Nacional e o MEI se tornaram as maiores plataformas de inclusão produtiva da história do país. A renda mínima deve dialogar com essa estrutura. Quem busca emprego ou empreende precisa continuar recebendo apoio até atingir renda estável.

O benefício deve diminuir gradualmente na medida em que a renda própria aumenta. A transição precisa ser segura, previsível e estimulante. A renda mínima deve ser articulada ao microcrédito produtivo orientado. O CrediAmigo, o microcrédito da Caixa e do Banco do Brasil e as iniciativas das cooperativas Sicredi e Cresol são importantes, mas ainda insuficientes.

Como ensinou Muhammad Yunus, microcrédito significa liberdade econômica. E liberdade, como aponta Elon Musk ao discutir a automação e a inteligência artificial, será cada vez mais essencial na reorganização do mercado de trabalho. Eduardo Suplicy introduziu esse debate no Brasil muito antes de se tornar global. Renda mínima, formação profissional e microcrédito precisam caminhar juntos. Essa energia já existe e pulsa nas periferias. A teologia da prosperidade reforça valores de superação e ascensão individual. Milhões de jovens estudam à noite, trabalham o dia todo e acreditam no próprio futuro. Falta ao Estado reconhecer essa força e dar a ela o instrumento adequado. Onde está esse tema no debate nacional.

Hoje, praticamente ausente. Além disso, é essencial modernizar a CLT. A legislação trabalhista concebida no período Vargas foi crucial quando trabalhadores não tinham direitos, mas não responde mais às dinâmicas atuais. Hoje, um trabalhador que recebe dez mil reais custa quase vinte mil ao empregador, e desses dez mil, o empregado efetivamente fica com cerca de oito. O restante desaparece em encargos e tributos. O que sobra no bolso é, em seguida, consumido em impostos e no custo de crédito mais alto do planeta.

O consumo brasileiro é um dos mais onerados do mundo. Aprofundar a reforma trabalhista de Temer, que ocorreu sem greves, pode modernizar, racionalizar e desburocratizar ainda mais. Isso não é apenas desejável. É indispensável. E, ao lado dela, deve saltar uma verdade econômica simples. Um programa nacional de renda mínima pode ser financiado pela redução dos maus gastos públicos e pela decorrente queda estrutural dos juros. Com eficiência fiscal e um país menos endividado, o Brasil terá a afluência social que hoje lhe falta.

Por tudo isso, é necessário afirmar com coragem e clareza que o ciclo do Bolsa Família enquanto emblema da política social brasileira está esgotado. Ele continuará sendo necessário como proteção básica, mas precisa ceder lugar a um novo paradigma. A renda mínima ativa, propulsora e libertadora. Integrada ao sistema de ensino técnico, ao Sistema S, ao microcrédito, ao emprego formal, à modernização das relações de trabalho e às tecnologias sociais inauguradas por Ruth Cardoso; ela transforma proteção em autonomia e dependência em futuro.

O Brasil só realizará seu potencial quando libertar a energia de seus jovens. Um grande programa nacional de renda mínima, inspirado no espírito do Comunidade Ativa, abrirá as portas que hoje mantêm milhões de brasileiros presos à sobrevivência. O futuro do Brasil exige mais do que manutenção. Exige movimento. Exige confiança nos brasileiros. Exige renda mínima.