IVA, uma proposta inconstitucional
A proposta de introduzir o Imposto Sobre o Valor Agregado, que consta no programa de Fernando Haddad, pode alterar a estrutura federativa
Publicado em 18 de outubro de 2018 às, 16h48.
Passados trinta anos da sua promulgação, a Constituição de 1988, que já foi modificada quase cem vezes, agora corre o risco de ser novamente alterada, desta vez de uma tacada só e num de seus elementos essenciais: a estrutura federativa. E isso porque se pretende introduzir o Imposto sobre o Valor Agregado -IVA, para substituir os impostos ditos incidentes sobre o consumo – IPI, ICMS, ISS, COFINS e PIS.
O novo imposto seria instituído por meio de lei complementar, aprovada pelo Congresso Nacional, e os entes federados, além de não poderem conceder benefícios fiscais, só poderiam fixar as suas alíquotas. Estas, porém, deveriam ser uniformes para todos os bens consumidos e serviços prestados no seu território, sem qualquer tipo de diferenciação.
Tal imposto, a par de constar de algumas propostas de emenda constitucional em tramitação no Congresso Nacional, cada qual com suas peculiaridades, constava do programa de vários candidatos à Presidência da República, como Ciro Gomes, Fernando Haddad, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles e João Amoedo. Entre os candidatos que passaram ao segundo turno, ao que se sabe é apenas Fernando Haddad quem pretende introduzi-lo acaso eleito.
Antes de saber se é viável econômica ou politicamente, é preciso saber se tal proposta é compatível com a Constituição. Entendo que não, especialmente por violar o princípio federativo. Este foi erigido pela Constituição Federal como um dos seus princípios fundamentais, digno de ser incluído no seu artigo primeiro e de figurar na lista dos elementos que sequer por Emenda Constitucional podem ser modificados. Trata-se, como se vê, de um de seus fundamentos, tal como os entendia Aristóteles: o leme, para o barco; o pilar, para o prédio; o poder, para o Estado; o pai, para o filho.
Reduzido ao osso, o princípio federativo é a conjugação de dois ideais: autonomia e uniformidade. Nenhum deles pode estar presente na sua totalidade: se houver autonomia absoluta dos entes federados, não haverá federação, mas estados independentes; se houver uniformidade absoluta, também não haverá federação, mas estado único. Federação só haverá quando os dois ideais estiverem presentes, em maior ou menor medida, mas sem que nenhum deles anule o outro.
A autonomia federativa significa o poder de cada ente federado regular-se, notadamente do ponto de vista político e financeiro, sendo a repartição de competências e de receitas tributárias um dos seus elementos essenciais. Se o ente federado não tiver poder para instituir tributos, conformando-os de acordo com seus planos políticos, nem para poder auferir e gerir as receitas decorrentes da sua arrecadação, ele não terá autonomia.
A uniformidade federativa traduz a necessidade de submissão dos entes federados a regras gerais comuns, de modo que a relação entre os próprios entes federados e entre estes e os contribuintes seja estável e previsível. Se as referidas regras gerais anularem o poder de os entes regularem de modo específico e diferenciado questões locais e de seu interesse, bem como suprimirem o seu poder para decidir se instituem ou não determinados tributos, não haverá uniformidade.
Pois são precisamente esses pressupostos que o novo imposto desconsidera. Ele será instituído por uma lei complementar aprovada pelo Congresso Nacional, e esta suprimirá o poder de os entes federados decidirem se e como instituem os seus impostos. E não se diga que o Senado Federal compõe o Congresso Nacional e representa os Estados. Tirante a experiência de que os senadores representam os seus eleitores e não os Estados, governados por um governador e por deputados estaduais eleitos pelo povo, os municípios certamente não estão representados no Congresso Nacional e nem mesmo indiretamente poderão conformar a tributação de acordo com os seus interesses.
O novo imposto ainda terá uma alíquota única para todos os bens consumidos e serviços prestados no território de cada Estado. Com isso, estes não poderão traçar políticas por meio da tributação, nem poderão diferenciar, conforme os seus interesses e suas circunstâncias políticas, econômicas e até geográficas, os bens e os serviços. A rigor, as competências tributárias, traduzidas por faculdades atribuídas aos entes federados para decidir tributar ou não tributar e para decidir como tributar, serão suprimidas em favor de uma alíquota única. Nem mesmo bens ou serviços essenciais, que repercutem sobre direitos fundamentais e devem ter suas alíquotas diferenciadas, poderão ser tratados de forma distinta.
Em suma, o novo imposto, se assim for concebido, suprimirá a autonomia em nome da uniformidade. Demolirá um dos pilares do prédio federativo, tal como concretamente edificado pelo constituinte originário, impedindo-o que permaneça de pé.
*Humberto Ávila é Professor Titular de Direito Tributário da USP (Universidade de São Paulo)