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Era possível prever e se preparar para o coronavírus?

Epidemiologistas e outros especialistas em saúde há décadas alertam sobre o perigo de uma pandemia viral

NOVA YORK: o estado norte-americano é considerado um novo epicentro mundial do coronavírus. (Eliana Aponte/Reuters)
NOVA YORK: o estado norte-americano é considerado um novo epicentro mundial do coronavírus. (Eliana Aponte/Reuters)
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Opinião

Publicado em 31 de março de 2020 às, 15h34.

Última atualização em 31 de março de 2020 às, 19h31.

Cambridge – Eventos como a pandemia de covid-19, a queda do mercado imobiliário nos Estados Unidos em 2007-2009 e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 são frequentemente chamados de "cisnes negros". O termo pretende sugerir que ninguém poderia vê-los chegando. Mas, de fato, esses episódios envolviam incógnitas conhecidas, e não o que o ex-secretário de Defesa dos EUA Donald Rumsfeld chamou de "incógnitas desconhecidas".

Afinal, em cada um dos casos, os analistas experientes estavam cientes não apenas de que algo assim poderia acontecer como também que provavelmente, em algum momento, aconteceriam. Embora a natureza exata e o momento desses eventos não fossem previsíveis com alta probabilidade, a gravidade das consequências era. Se os formuladores de políticas tivessem considerado os riscos e adotado medidas preventivas com antecedência, eles poderiam ter evitado ou atenuado o desastre.

No caso da covid-19, epidemiologistas e outros especialistas em saúde vêm durante décadas alertando sobre o perigo de uma pandemia viral, inclusive recentemente, como no ano passado. Mas isso não impediu o presidente dos EUA, Donald Trump, de afirmar que a crise não era "prevista", que essa é uma questão que "ninguém jamais pensou que se transformaria em problema". Da mesma forma, após os ataques de 11 de setembro de 2001, o presidente George W. Bush erroneamente afirmou: “Não havia ninguém pelo menos em nosso governo, e não creio que tampouco no governo anterior, que pudesse imaginar aviões se lançando contra edifícios desse jeito”.

À luz dessas declarações, é tentador atribuir esses desastres apenas à incompetência do Estado. Mas apontar o erro humano na cúpula como único responsável é fácil demais para ser uma completa explicação, considerando-se que o público em geral e os mercados financeiros também foram pegos de surpresa. Os mercados de ações atingiram altas históricas pouco antes da crise financeira de 2008 e novamente antes da última queda que começou no final de fevereiro. Nos dois casos, havia muitos e previsíveis riscos inerentes que deveriam ter alertado contra a exuberância irracional.

Nessas ocasiões, investidores não estavam apenas seguindo previsões de referência excessivamente otimistas. Em vez disso, eles não viram praticamente nenhum risco. O Índice de Volatilidade da Bolsa de Valores de Chicago (VIX) – medida da volatilidade percebida do mercado financeiro (às vezes conhecido como "índice do medo") – atingiu um recorde próximo ao mínimo histórico entre 2007-2009 e 2020.

Vários fatores ajudam a explicar por que eventos extremos costumam nos pegar de surpresa. Primeiro, até mesmo os especialistas técnicos podem perder o foco se não ampliarem sua visão o suficiente para fazer a análise dos dados. Às vezes, eles olham apenas para conjuntos de dados recentes, assumindo que em um mundo em rápida mudança eventos de 100 anos atrás são irrelevantes. Os americanos geralmente fazem isso com um par adicional de antolhos: um foco excessivo nos Estados Unidos. Dar pouca atenção ao resto do mundo é um dos perigos do excepcionalismo americano.

Em 2006, por exemplo, especialistas em finanças que precificaram títulos lastreados em hipotecas dos EUA baseavam-se principalmente na história recente dos preços da moradia nos EUA, operando efetivamente sob a regra de que os preços da habitação nunca caem em termos nominais. Mas essa regra refletia apenas o fato de que os próprios analistas nunca haviam testemunhado queda dos preços dos imóveis em termos nominais em sua época. De fato, os preços das moradias caíram nos EUA nos anos 30 e no Japão nos anos 90. Mas esses episódios não coincidiram com a experiência vivida pelos analistas financeiros dos EUA.

Se esses analistas tivessem consultado apenas um conjunto mais amplo de dados, suas estimativas estatísticas teriam admitido a probabilidade de que os preços das moradias acabariam por cair e, portanto, os títulos lastreados em hipotecas cairiam. Os analistas financeiros que limitam seus dados a seu próprio país e período de observação são como filósofos britânicos do século 19 que concluíram por indução de observação pessoal que todos os cisnes são brancos. Eles nunca haviam estado na Austrália, onde cisnes negros haviam sido descobertos no século anterior, nem jamais haviam consultado um ornitólogo.

Além disso, mesmo quando os especialistas acertam, os líderes políticos geralmente não ouvem. Aqui, o problema é que os sistemas políticos tendem a não reagir a alertas que estimam o risco de algum desastre em um número aparentemente baixo, como 5% ao ano, mesmo quando os custos previsíveis de ignorar essas probabilidades são enormes. Os especialistas que alertaram para uma pandemia grave acertaram a avaliação de risco. Isso também aconteceu com  Bill Gates e muitos outros argutos observadores que trabalham em setores tão diversos quanto a saúde pública e os negócios cinematográficos. Mas o governo federal dos EUA não estava preparado.

Pior ainda, em 2018, o governo Trump eliminou a unidade do Conselho de Segurança Nacional criada pelo presidente Barack Obama para lidar com o risco de pandemias; e tentou reiteradamente cortar os orçamentos dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças e outras agências de saúde pública. Não é de admirar que o tratamento da pandemia nos Estados Unidos – a falta de testes e a perigosa escassez de equipamentos e instalações para cuidados intensivos – tenha ficado tão aquém de outras economias avançadas, como Singapura e Coreia do Sul.

Mas, além de reduzir a capacidade dos EUA de responder a pandemias, a Casa Branca simplesmente não tinha nenhum plano, nem reconheceu que precisaria de um, mesmo depois de se tornar óbvio que o surto de coronavírus na China se espalharia globalmente. Ao contrário, o governo titubeou e se eximiu da culpa, não conseguiu acelerar os testes e, assim, manipulou artificialmente o número de casos confirmados, talvez para sustentar os preços das ações.

Quanto à alegação de Trump de que “ninguém nunca viu nada assim antes”, basta apenas voltar o olhar quatro anos trás para o surto mortal de ebola que matou 11.000 pessoas. Mas elas estavam longe, na África Ocidental. A pandemia de influenza de 1918-19 matou 675.000 americanos (junto com cerca de 50 milhões em todo o mundo), mas isso foi há 100 anos.

Aparentemente, nossos líderes políticos ficam impressionados apenas quando um desastre mata um grande número de cidadãos em seu próprio país e gravado em suas memórias. Se você nunca viu um cisne negro com seus próprios olhos, então eles não existem.

O mundo agora está aprendendo sobre pandemias da maneira mais difícil. Esperemos que o preço em vidas não seja muito alto – e que as lições certas sejam aprendidas