Em busca de novos símbolos
Rafael Kato A polêmica da semana nas redes sociais foi o caso de uma jovem de Curitiba acusada de apropriação cultural — uma nova expressão da moda, que como tantas outras, acaba por causar mais confusões do que resolvê-las. O caso em questão, para quem não acompanhou, é o seguinte: em tratamento contra o câncer, […]
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2017 às 07h25.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h42.
Rafael Kato
A polêmica da semana nas redes sociais foi o caso de uma jovem de Curitiba acusada de apropriação cultural — uma nova expressão da moda, que como tantas outras, acaba por causar mais confusões do que resolvê-las. O caso em questão, para quem não acompanhou, é o seguinte: em tratamento contra o câncer, a jovem decidiu cobrir a cabeça com um turbante. Segundo ela, enquanto estava em uma estação do metrô, foi abordada por outra mulher e acusada de apropriação cultural. O argumento: ela, que é branca, não poderia usar um turbante. Este, de acordo com a outra mulher, que era negra, seria um símbolo das mulheres negras, e uma mulher branca usá-lo seria, portanto, uma ofensa, uma apropriação cultural. Foi a senha para debates acalorados pela internet.
A questão que parece ter escapado a todos os comentaristas da rede é a seguinte: o que seria a história senão a sucessão de apropriações culturais? No atual best-seller Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, o historiador israelense Yuval Harari coloca o assunto de maneira simples e eficaz: embora o macarrão com molho de tomates seja hoje um símbolo da Itália, Júlio César nunca deu uma garfada em um espaguete; os guerreiros Sioux, que chegaram aos dias atuais como hábeis cavaleiros do oeste americano, só aprenderam a montaria com a chegada dos colonizadores europeus — o cavalo não era um animal nativo das Américas. Poderíamos nos alongar nos exemplos, desde as calças jeans usadas por trabalhadores braçais das minas de carvão aos calçados de borracha já utilizados pela sociedades pré-colombianas.
Nesse sentido, a procura pela originalidade nas culturas é um trabalho ingrato. Estamos inventando, recriando, assimilando e, muitas vezes, esquecendo os símbolos do cotidiano desde o momento em que surgimos na Terra. Assim como a macarronada é um símbolo inventado da Itália moderna (e a menorá e a cruz são invenções do judaísmo e do cristianismo), o turbante é para parte da comunidade negra um símbolo inventado de resistência, de herança familiar e de lembrança do passado escravocrata do país. Mas, para o primeiro-ministro da Índia, da comunidade Sikh, terá outro significado, assim como para a jovem brasileira com câncer.
Temos, portanto, um questão de comunicação. Uma única chave abre diversas portas de significado. Para resolver a confusão, seria necessário encontrarmos juntos um símbolo que falasse aos diferentes grupos. É aqui, justamente, que reside a miséria do Brasil: a nossa pobreza de símbolos. Ao varrermos a história para debaixo do tapete não inventamos aquilo que pode nos unir. Um bom exemplo é o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Foi o maior local de desembarque e tráfico de escravos do mundo entre os séculos 18 e 19.
Hoje, mesmo após o projeto de revitalização da região, o Cais não recebe a devida atenção histórica e arqueológica. Sem nenhum museu, sem exposição, sem símbolos — isso sim é o que deveria indignar a todos, não a polêmica do coitado do turbante. Não muito longe dali fica o faraônico Museu do Amanhã, cujo elemento central é uma churinga, um amuleto da cultura aborígene australiana. Um objeto tão longe do nosso cotidiano que, até onde consta, ninguém por aqui, com exceção do próprio museu, apropriou-se dele culturalmente.
Rafael Kato
A polêmica da semana nas redes sociais foi o caso de uma jovem de Curitiba acusada de apropriação cultural — uma nova expressão da moda, que como tantas outras, acaba por causar mais confusões do que resolvê-las. O caso em questão, para quem não acompanhou, é o seguinte: em tratamento contra o câncer, a jovem decidiu cobrir a cabeça com um turbante. Segundo ela, enquanto estava em uma estação do metrô, foi abordada por outra mulher e acusada de apropriação cultural. O argumento: ela, que é branca, não poderia usar um turbante. Este, de acordo com a outra mulher, que era negra, seria um símbolo das mulheres negras, e uma mulher branca usá-lo seria, portanto, uma ofensa, uma apropriação cultural. Foi a senha para debates acalorados pela internet.
A questão que parece ter escapado a todos os comentaristas da rede é a seguinte: o que seria a história senão a sucessão de apropriações culturais? No atual best-seller Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, o historiador israelense Yuval Harari coloca o assunto de maneira simples e eficaz: embora o macarrão com molho de tomates seja hoje um símbolo da Itália, Júlio César nunca deu uma garfada em um espaguete; os guerreiros Sioux, que chegaram aos dias atuais como hábeis cavaleiros do oeste americano, só aprenderam a montaria com a chegada dos colonizadores europeus — o cavalo não era um animal nativo das Américas. Poderíamos nos alongar nos exemplos, desde as calças jeans usadas por trabalhadores braçais das minas de carvão aos calçados de borracha já utilizados pela sociedades pré-colombianas.
Nesse sentido, a procura pela originalidade nas culturas é um trabalho ingrato. Estamos inventando, recriando, assimilando e, muitas vezes, esquecendo os símbolos do cotidiano desde o momento em que surgimos na Terra. Assim como a macarronada é um símbolo inventado da Itália moderna (e a menorá e a cruz são invenções do judaísmo e do cristianismo), o turbante é para parte da comunidade negra um símbolo inventado de resistência, de herança familiar e de lembrança do passado escravocrata do país. Mas, para o primeiro-ministro da Índia, da comunidade Sikh, terá outro significado, assim como para a jovem brasileira com câncer.
Temos, portanto, um questão de comunicação. Uma única chave abre diversas portas de significado. Para resolver a confusão, seria necessário encontrarmos juntos um símbolo que falasse aos diferentes grupos. É aqui, justamente, que reside a miséria do Brasil: a nossa pobreza de símbolos. Ao varrermos a história para debaixo do tapete não inventamos aquilo que pode nos unir. Um bom exemplo é o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Foi o maior local de desembarque e tráfico de escravos do mundo entre os séculos 18 e 19.
Hoje, mesmo após o projeto de revitalização da região, o Cais não recebe a devida atenção histórica e arqueológica. Sem nenhum museu, sem exposição, sem símbolos — isso sim é o que deveria indignar a todos, não a polêmica do coitado do turbante. Não muito longe dali fica o faraônico Museu do Amanhã, cujo elemento central é uma churinga, um amuleto da cultura aborígene australiana. Um objeto tão longe do nosso cotidiano que, até onde consta, ninguém por aqui, com exceção do próprio museu, apropriou-se dele culturalmente.