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Dona Marisa, os médicos e o zapzap

Joel Pinheiro da Fonseca A morte da ex-Primeira Dama Marisa Letícia na semana passada foi um evento singularmente propício para ilustrar a dinâmica política das redes sociais. Resumidamente, a sequência foi essa: uma médica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, compartilhou dados sigilosos sobre o estado de saúde de Marisa em um grupo de Whatsapp […]

HOSPITAL SÍRIO-LIBANÊS, EM SP: não estamos ficando eticamente superiores; apenas mais hipócritas e mais chatos / Breno Rotatori/VEJA (Breno Rota/VEJA)
DR

Da Redação

Publicado em 11 de fevereiro de 2017 às 06h30.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h54.

Joel Pinheiro da Fonseca

A morte da ex-Primeira Dama Marisa Letícia na semana passada foi um evento singularmente propício para ilustrar a dinâmica política das redes sociais. Resumidamente, a sequência foi essa: uma médica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, compartilhou dados sigilosos sobre o estado de saúde de Marisa em um grupo de Whatsapp de médicos com quem havia estudado. Neste grupo, alguns médicos fizeram brincadeiras e expressaram o desejo de que ela morresse ou mesmo fosse morta enquanto internada. As mensagens do grupo foram capturadas e divulgadas no Facebook. Uma vez no Facebook, várias pessoas ficaram indignadas e passaram a perseguir os médicos. Outros apenas lamentaram o ocorrido e apontaram o ódio e a falta de ética dos médicos. A médica que vazou a informação foi demitida do hospital. A Unimed São Roque decidiu fazer o mesmo com um dos médicos que fizeram comentários de mau gosto.

Vou começar minha análise afirmando algo talvez polêmico, mas no fundo quase trivial: desejar a morte de quem não conhecemos e que representa algo que detestamos não tem nada demais. É, aliás, uma ocorrência comum, banal. Toda vez que políticos são queimados em esfinge, em que se comemora uma morte do líder do outro lado (como pessoas de esquerda fizeram com a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher recentemente), é isso que está em jogo. Festejar a morte de governantes tidos como maus, ademais, tem longa tradição histórica.

Ninguém fica verdadeiramente tocada pela morte de quem lhe é distante. Se não fosse assim, viveríamos em estado de luto constante, posto que sempre há alguém morrendo. Afetamos uma tristeza quando, por exemplo, interagimos com entes próximos do falecido, ou quando, em público, queremos manter o decoro em respeito a eles. Mas privadamente, a morte de quem nos é distante é irrelevante. E se a pessoa representa algo que combatemos, pode ser celebrada ou desejada.

Isso não significa, de forma alguma, que a pessoa que fez o comentário (ou guardou-o para si) escolheria matar o alvo do comentário se tivesse a oportunidade. Não diz absolutamente nada sobre seu caráter. Talvez os médicos que fizeram o comentário sejam excelentes profissionais, que ajudam a salvar muitas vidas. Por um comentário em nada diferente de tantos outros que ouvimos (e falamos), agora já não o poderão fazer. Em outras palavras: o patrulhamento e o denuncismo que se voltaram contra eles causa danos maiores do que o crime “terrível” que cometeram: comentários maldosos e jocosos numa conversa privada.

O Facebook está se tornando um grande palco para cada pessoa expor sua própria (suposta) superioridade moral. Quando se é de esquerda, comentar a falta de ética da direita, e vice-versa. Todos ficam horrorizados com a falta de ética e com o tamanho do ódio do outro lado. Ódio de que eles próprios são capazes (todo mundo odeia), fato que omitem neste momento de se pintar como superior. O moralismo crescente que povoa as redes não passa de uma máscara de um imenso teatro de vaidades. Em vez de carro importado, o que pega bem agora é ter consciência social. Não estamos ficando eticamente superiores; apenas mais hipócritas e mais chatos.

Os atos verdadeiramente questionáveis nessa história, por outro lado, receberam muito menos atenção. O primeiro deles é a decisão de divulgar dados médicos sigilosos num grupo de Whatsapp. Dito isso, uma pesquisa recente da UNIFESP revelou que 80% dos médicos revelam fatos sigilosos para colegas em redes sociais como o Whatsapp. Dado que a prática é tão generalizada, talvez em vez de condenar o ato de forma categórica (por se desviar do ideal proposto pelo código de ética), seria interessante entender por que ele ocorre. Será que a prática dos profissionais – inclusive dos bons – não indica algo que a pureza do mandamento ético não captou? Necessidade de partilhar o que se vive, de pedir conselhos, de ouvir sugestões e insights.

O segundo ato que merece questionamento sério nem mesmo foi percebido como uma ação consciente. Uma conversa aconteceu no Whatsapp e foi parar no Facebook. O que necessariamente tem que haver no meio desses dois eventos? Um participante do grupo – de uma conversa privada – que toma a decisão de partilhar o conteúdo dela com o mundo, traindo a confiança de quem conversava ali. E todo mundo reage a isso com naturalidade.

Imagine um mundo no qual todo mundo anda com microfones debaixo da roupa, registrando tudo o que amigos e mesmo conhecidos falam, para, na primeira fala comprometedora, levar tudo a público. É o mundo das redes. Causar indignação geral com a suposta má conduta alheia é um caminho para se engrandecer. Não estamos melhores; estamos menos confiáveis e mais fofoqueiros.

Vivemos, suspeito, ainda uma inadequação com a mudança que as redes sociais trouxeram. Há comentários que se prestam ao âmbito privado, e não à esfera pública. Fazer pouco da morte alheia é um desses casos. Só que no passado todas as nossas conversas se davam na esfera privada, e poucos eram os momentos que uma pessoa estava falando na esfera pública – isto é, para legiões de estranhos. No dia a dia das redes sociais, pode-se criar a impressão de que a conversa é privada. Mas ela está sempre – mesmo no Whatsapp e outros aplicativos de mensagens – a um clique de se tornar tão pública quanto a manchete de um jornal. Tudo que se faz nas redes é público ou potencialmente público. Com as câmeras dos smartphones, mesmo o que devia ser offline está conectado. E a hipocrisia normal (talvez inevitável) das massas fará questão de levar tudo que chegar a ela da pior maneira possível, pois julgar é seu passatempo favorito.

Provavelmente não dá para mudar nada disso. Se muito, vamos nos adaptar à nova realidade. Tudo que é sincero e não filtrado pelos códigos do discurso público terá que ficar de fora de nossa vida online. O fingimento autopoliciado de um político em época de campanha vai se tornar a postura esperada de todos pela maior parte de seu dia, sem nenhum prêmio salvo a ansiedade de não ter sido linchado – ainda.

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Joel Pinheiro da Fonseca

A morte da ex-Primeira Dama Marisa Letícia na semana passada foi um evento singularmente propício para ilustrar a dinâmica política das redes sociais. Resumidamente, a sequência foi essa: uma médica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, compartilhou dados sigilosos sobre o estado de saúde de Marisa em um grupo de Whatsapp de médicos com quem havia estudado. Neste grupo, alguns médicos fizeram brincadeiras e expressaram o desejo de que ela morresse ou mesmo fosse morta enquanto internada. As mensagens do grupo foram capturadas e divulgadas no Facebook. Uma vez no Facebook, várias pessoas ficaram indignadas e passaram a perseguir os médicos. Outros apenas lamentaram o ocorrido e apontaram o ódio e a falta de ética dos médicos. A médica que vazou a informação foi demitida do hospital. A Unimed São Roque decidiu fazer o mesmo com um dos médicos que fizeram comentários de mau gosto.

Vou começar minha análise afirmando algo talvez polêmico, mas no fundo quase trivial: desejar a morte de quem não conhecemos e que representa algo que detestamos não tem nada demais. É, aliás, uma ocorrência comum, banal. Toda vez que políticos são queimados em esfinge, em que se comemora uma morte do líder do outro lado (como pessoas de esquerda fizeram com a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher recentemente), é isso que está em jogo. Festejar a morte de governantes tidos como maus, ademais, tem longa tradição histórica.

Ninguém fica verdadeiramente tocada pela morte de quem lhe é distante. Se não fosse assim, viveríamos em estado de luto constante, posto que sempre há alguém morrendo. Afetamos uma tristeza quando, por exemplo, interagimos com entes próximos do falecido, ou quando, em público, queremos manter o decoro em respeito a eles. Mas privadamente, a morte de quem nos é distante é irrelevante. E se a pessoa representa algo que combatemos, pode ser celebrada ou desejada.

Isso não significa, de forma alguma, que a pessoa que fez o comentário (ou guardou-o para si) escolheria matar o alvo do comentário se tivesse a oportunidade. Não diz absolutamente nada sobre seu caráter. Talvez os médicos que fizeram o comentário sejam excelentes profissionais, que ajudam a salvar muitas vidas. Por um comentário em nada diferente de tantos outros que ouvimos (e falamos), agora já não o poderão fazer. Em outras palavras: o patrulhamento e o denuncismo que se voltaram contra eles causa danos maiores do que o crime “terrível” que cometeram: comentários maldosos e jocosos numa conversa privada.

O Facebook está se tornando um grande palco para cada pessoa expor sua própria (suposta) superioridade moral. Quando se é de esquerda, comentar a falta de ética da direita, e vice-versa. Todos ficam horrorizados com a falta de ética e com o tamanho do ódio do outro lado. Ódio de que eles próprios são capazes (todo mundo odeia), fato que omitem neste momento de se pintar como superior. O moralismo crescente que povoa as redes não passa de uma máscara de um imenso teatro de vaidades. Em vez de carro importado, o que pega bem agora é ter consciência social. Não estamos ficando eticamente superiores; apenas mais hipócritas e mais chatos.

Os atos verdadeiramente questionáveis nessa história, por outro lado, receberam muito menos atenção. O primeiro deles é a decisão de divulgar dados médicos sigilosos num grupo de Whatsapp. Dito isso, uma pesquisa recente da UNIFESP revelou que 80% dos médicos revelam fatos sigilosos para colegas em redes sociais como o Whatsapp. Dado que a prática é tão generalizada, talvez em vez de condenar o ato de forma categórica (por se desviar do ideal proposto pelo código de ética), seria interessante entender por que ele ocorre. Será que a prática dos profissionais – inclusive dos bons – não indica algo que a pureza do mandamento ético não captou? Necessidade de partilhar o que se vive, de pedir conselhos, de ouvir sugestões e insights.

O segundo ato que merece questionamento sério nem mesmo foi percebido como uma ação consciente. Uma conversa aconteceu no Whatsapp e foi parar no Facebook. O que necessariamente tem que haver no meio desses dois eventos? Um participante do grupo – de uma conversa privada – que toma a decisão de partilhar o conteúdo dela com o mundo, traindo a confiança de quem conversava ali. E todo mundo reage a isso com naturalidade.

Imagine um mundo no qual todo mundo anda com microfones debaixo da roupa, registrando tudo o que amigos e mesmo conhecidos falam, para, na primeira fala comprometedora, levar tudo a público. É o mundo das redes. Causar indignação geral com a suposta má conduta alheia é um caminho para se engrandecer. Não estamos melhores; estamos menos confiáveis e mais fofoqueiros.

Vivemos, suspeito, ainda uma inadequação com a mudança que as redes sociais trouxeram. Há comentários que se prestam ao âmbito privado, e não à esfera pública. Fazer pouco da morte alheia é um desses casos. Só que no passado todas as nossas conversas se davam na esfera privada, e poucos eram os momentos que uma pessoa estava falando na esfera pública – isto é, para legiões de estranhos. No dia a dia das redes sociais, pode-se criar a impressão de que a conversa é privada. Mas ela está sempre – mesmo no Whatsapp e outros aplicativos de mensagens – a um clique de se tornar tão pública quanto a manchete de um jornal. Tudo que se faz nas redes é público ou potencialmente público. Com as câmeras dos smartphones, mesmo o que devia ser offline está conectado. E a hipocrisia normal (talvez inevitável) das massas fará questão de levar tudo que chegar a ela da pior maneira possível, pois julgar é seu passatempo favorito.

Provavelmente não dá para mudar nada disso. Se muito, vamos nos adaptar à nova realidade. Tudo que é sincero e não filtrado pelos códigos do discurso público terá que ficar de fora de nossa vida online. O fingimento autopoliciado de um político em época de campanha vai se tornar a postura esperada de todos pela maior parte de seu dia, sem nenhum prêmio salvo a ansiedade de não ter sido linchado – ainda.

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