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Como a pandemia deveria chacoalhar a economia

Com a pandemia, aprendemos que os mercados podem funcionar sem a necessidade de uma autoridade central

ECONOMIA: a disrupção causada pela COVID-19 mostrou o quanto tomamos as coisas por certo. (Noriko Hayashi/Bloomberg/Getty Images)
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felipegiacomelli

Publicado em 24 de junho de 2020 às 14h33.

ITHACA – A pandemia do covid-19 causou grandes disrupções nos mercados, nas cadeias de suprimentos e no comércio mundial. Forçou um acerto de contas com muitas políticas tradicionais e deveria ser tratada como uma oportunidade para repensar algumas das ideias que os economistas há muito tomam por certo – incluindo a noção básica do que faz uma economia funcionar eficientemente.

Essa noção remonta a 1776, um ano marcante durante o qual Adam Smith publicou The Wealth of Nations, ( A Riqueza das Nações), 13 estados americanos declararam independência e, no dia, 4 de julho, o filósofo David Hume organizou um jantar para seus amigos, incluindo Smith, para celebrar o crepúsculo de sua vida.

O trabalho inovador de Smith, juntamente com as posteriores e muito influentes contribuições de Léon Walras, Stanley Jevons e Alfred Marshall, transformaram a economia. Aprendemos que os mercados podem funcionar sem a necessidade de uma autoridade central, porque as ações das pessoas comuns que tentam ganhar mais e comprar os bens que desejam criam picos e vales de demanda e oferta, fazendo com que os preços subam e desçam.

À medida que essa ideia foi formalizada, as normas e costumes sociais dos quais os mercados também dependem se tornaram parte dos arcabouços – tácitos pressupostos que ignoramos, porque são imutáveis ​​nos tempos normais e depois esquecemos de sua existência.

Mas uma disrupção como a causada pelo COVID-19 nos lembra o quanto tomamos as coisas por certo. Percebi isso durante os quase três meses que passei em Mumbai durante o confinamento, quando familiares e amigos me contaram sobre conflitos, confrontos e muito estresse na cidade.

Enquanto alguns habitantes foram punidos por não usar máscaras ou por violar normas de distanciamento social, outros foram criticados por exagerar no bloqueio. Algumas associações de moradores fotografavam qualquer pessoa que saísse de casa, mesmo estando sozinha e longe de outras pessoas, argumentando que esse comportamento era irresponsável. Como os componentes comportamentais trazidos pela pandemia são novos e ainda precisam se estabilizar, estamos mais conscientes deles do que das normas sociais estabelecidas há mais tempo.

Os mercados também se apoiam nessas normas, a maioria das quais, tendo evoluído ao longo do tempo e se tornado rotineiras, estão além das explícitas suposições dos economistas. Como argumentaram Karl Polanyi, Mark Granovetter e outros, a economia não pode ser entendida como se estivesse distante da sociedade. Certas condições sociais e institucionais devem estar presentes para que uma economia funcione efetivamente. Mas a profissão econômica ignorou quase completamente esses importantes lembretes ou, na melhor das hipóteses, os deixou de lado com um meneio de cabeça.

Em meu livro Beyond the Invisible Hand (Muito Além da Mão Invisível), argumentei que o comércio e câmbio dependem não apenas de suposições técnicas de que todos os economistas têm conhecimento, como a lei da utilidade marginal decrescente, mas também de outras condições que assumimos como certas. Isso inclui poder confiar um no outro e na nossa capacidade de comunicação, o que nos permite negociar e concluir negócios. Mas nenhum economista assume a expressão "pode-se dizer" como uma hipótese. Considera isso um fato.

Infelizmente, essa abordagem levou a grandes lacunas em nossa compreensão de como a mão invisível funciona. Muitos economistas conservadores enfatizam que, enquanto os governos não intervierem e restringirem as liberdades individuais, as economias funcionarão eficientemente. A mão invisível fará tudo. Mas eles esquecem que a eficiência também exige muitas restrições sobre como nos comportamos, como não agredir outros comerciantes e fugir com seus produtos.

Essa supervisão, por sua vez, levou a grandes erros de formulação de políticas, como o "Consenso de Washington", que defendia restringir a intervenção do governo na economia e controlar rigidamente os déficits fiscais. Como Joseph Stiglitz tem apontado, o assim chamado Consenso de Washington foi de fato confinado à área entre as ruas 15 e 19 de Washington, onde o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, o Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial estão alojados. No entanto, essa nova ortodoxia foi lançada sobre todas as economias em desenvolvimento, independentemente de atenderem às condições sociais e institucionais exigidas por essas políticas. Sem nenhuma surpresa, as medidas frequentemente deram errado.

Felizmente, agora há um crescente reconhecimento de que os ajustes de preços não são os únicos ou até mesmo os fatores necessários que ajudam os mercados a se ajustarem. Em um recente artigo, Michael Richter e Ariel Rubinstein mostram que os mercados podem se ajustar de diferentes maneiras, algumas das quais se baseiam inteiramente em normas sociais. Na maioria das famílias, mesmo as grandes, a geladeira fica aberta e seu conteúdo não possui preços marcados. Mas a geladeira não é esvaziada momentos depois de abastecida. Muitos tipos de comportamento são socialmente proibidos, e em algumas sociedades essas proibições tornaram-se tão profundamente enraizadas psicologicamente que nenhuma autoridade externa se faz necessária para aplicá-las.

Isso abre uma pauta para pesquisa potencialmente grande em relação às normas que devemos incentivar para tornar as economias mais equitativas e produtivas. A pandemia do COVID-19, ao tornar o manifesto tácito, aumentou a conscientização sobre esse desafio – e descobertas interessantes estão começando a aparecer. Em um  recente artigo, por exemplo, Wooyoung Lim e Pengfei Zhang usam experimentos de laboratório para mostrar como as normas comportamentais pró-vacinação podem surgir voluntariamente, potencialmente ajudando populações a alcançar a imunidade de rebanho.

Mas nem todas as boas normas surgem voluntariamente. Tampouco, as sociedades precisam esperar que o lento processo de evolução se desenvolva antes de convergir para elas. Em vez disso, a pesquisa contemporânea deveria permitir-nos isolar normas desejáveis ​​que podemos então conscientemente tentar estimular.

Por exemplo, aprendemos agora que, durante as pandemias, devemos manter dois metros de distância dos outros e usar máscara. Isso não aconteceu voluntariamente, ou porque aqueles que não seguiram essas normas morreram, mas porque pesquisas de epidemiologistas nos ensinaram tais normas e os governos impuseram ou incentivaram a adesão a elas. Espera-se que a disrupção causada pelo COVID-19 também incentive economistas a identificar regras que possam nos ajudar a construir um mundo mais equitativo, próspero e sustentável.

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ITHACA – A pandemia do covid-19 causou grandes disrupções nos mercados, nas cadeias de suprimentos e no comércio mundial. Forçou um acerto de contas com muitas políticas tradicionais e deveria ser tratada como uma oportunidade para repensar algumas das ideias que os economistas há muito tomam por certo – incluindo a noção básica do que faz uma economia funcionar eficientemente.

Essa noção remonta a 1776, um ano marcante durante o qual Adam Smith publicou The Wealth of Nations, ( A Riqueza das Nações), 13 estados americanos declararam independência e, no dia, 4 de julho, o filósofo David Hume organizou um jantar para seus amigos, incluindo Smith, para celebrar o crepúsculo de sua vida.

O trabalho inovador de Smith, juntamente com as posteriores e muito influentes contribuições de Léon Walras, Stanley Jevons e Alfred Marshall, transformaram a economia. Aprendemos que os mercados podem funcionar sem a necessidade de uma autoridade central, porque as ações das pessoas comuns que tentam ganhar mais e comprar os bens que desejam criam picos e vales de demanda e oferta, fazendo com que os preços subam e desçam.

À medida que essa ideia foi formalizada, as normas e costumes sociais dos quais os mercados também dependem se tornaram parte dos arcabouços – tácitos pressupostos que ignoramos, porque são imutáveis ​​nos tempos normais e depois esquecemos de sua existência.

Mas uma disrupção como a causada pelo COVID-19 nos lembra o quanto tomamos as coisas por certo. Percebi isso durante os quase três meses que passei em Mumbai durante o confinamento, quando familiares e amigos me contaram sobre conflitos, confrontos e muito estresse na cidade.

Enquanto alguns habitantes foram punidos por não usar máscaras ou por violar normas de distanciamento social, outros foram criticados por exagerar no bloqueio. Algumas associações de moradores fotografavam qualquer pessoa que saísse de casa, mesmo estando sozinha e longe de outras pessoas, argumentando que esse comportamento era irresponsável. Como os componentes comportamentais trazidos pela pandemia são novos e ainda precisam se estabilizar, estamos mais conscientes deles do que das normas sociais estabelecidas há mais tempo.

Os mercados também se apoiam nessas normas, a maioria das quais, tendo evoluído ao longo do tempo e se tornado rotineiras, estão além das explícitas suposições dos economistas. Como argumentaram Karl Polanyi, Mark Granovetter e outros, a economia não pode ser entendida como se estivesse distante da sociedade. Certas condições sociais e institucionais devem estar presentes para que uma economia funcione efetivamente. Mas a profissão econômica ignorou quase completamente esses importantes lembretes ou, na melhor das hipóteses, os deixou de lado com um meneio de cabeça.

Em meu livro Beyond the Invisible Hand (Muito Além da Mão Invisível), argumentei que o comércio e câmbio dependem não apenas de suposições técnicas de que todos os economistas têm conhecimento, como a lei da utilidade marginal decrescente, mas também de outras condições que assumimos como certas. Isso inclui poder confiar um no outro e na nossa capacidade de comunicação, o que nos permite negociar e concluir negócios. Mas nenhum economista assume a expressão "pode-se dizer" como uma hipótese. Considera isso um fato.

Infelizmente, essa abordagem levou a grandes lacunas em nossa compreensão de como a mão invisível funciona. Muitos economistas conservadores enfatizam que, enquanto os governos não intervierem e restringirem as liberdades individuais, as economias funcionarão eficientemente. A mão invisível fará tudo. Mas eles esquecem que a eficiência também exige muitas restrições sobre como nos comportamos, como não agredir outros comerciantes e fugir com seus produtos.

Essa supervisão, por sua vez, levou a grandes erros de formulação de políticas, como o "Consenso de Washington", que defendia restringir a intervenção do governo na economia e controlar rigidamente os déficits fiscais. Como Joseph Stiglitz tem apontado, o assim chamado Consenso de Washington foi de fato confinado à área entre as ruas 15 e 19 de Washington, onde o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, o Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial estão alojados. No entanto, essa nova ortodoxia foi lançada sobre todas as economias em desenvolvimento, independentemente de atenderem às condições sociais e institucionais exigidas por essas políticas. Sem nenhuma surpresa, as medidas frequentemente deram errado.

Felizmente, agora há um crescente reconhecimento de que os ajustes de preços não são os únicos ou até mesmo os fatores necessários que ajudam os mercados a se ajustarem. Em um recente artigo, Michael Richter e Ariel Rubinstein mostram que os mercados podem se ajustar de diferentes maneiras, algumas das quais se baseiam inteiramente em normas sociais. Na maioria das famílias, mesmo as grandes, a geladeira fica aberta e seu conteúdo não possui preços marcados. Mas a geladeira não é esvaziada momentos depois de abastecida. Muitos tipos de comportamento são socialmente proibidos, e em algumas sociedades essas proibições tornaram-se tão profundamente enraizadas psicologicamente que nenhuma autoridade externa se faz necessária para aplicá-las.

Isso abre uma pauta para pesquisa potencialmente grande em relação às normas que devemos incentivar para tornar as economias mais equitativas e produtivas. A pandemia do COVID-19, ao tornar o manifesto tácito, aumentou a conscientização sobre esse desafio – e descobertas interessantes estão começando a aparecer. Em um  recente artigo, por exemplo, Wooyoung Lim e Pengfei Zhang usam experimentos de laboratório para mostrar como as normas comportamentais pró-vacinação podem surgir voluntariamente, potencialmente ajudando populações a alcançar a imunidade de rebanho.

Mas nem todas as boas normas surgem voluntariamente. Tampouco, as sociedades precisam esperar que o lento processo de evolução se desenvolva antes de convergir para elas. Em vez disso, a pesquisa contemporânea deveria permitir-nos isolar normas desejáveis ​​que podemos então conscientemente tentar estimular.

Por exemplo, aprendemos agora que, durante as pandemias, devemos manter dois metros de distância dos outros e usar máscara. Isso não aconteceu voluntariamente, ou porque aqueles que não seguiram essas normas morreram, mas porque pesquisas de epidemiologistas nos ensinaram tais normas e os governos impuseram ou incentivaram a adesão a elas. Espera-se que a disrupção causada pelo COVID-19 também incentive economistas a identificar regras que possam nos ajudar a construir um mundo mais equitativo, próspero e sustentável.

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