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A questão racial: dilemas e oportunidades

Já virou senso comum falar sobre a miscigenação da população brasileira. Um povo que mistura em sua cultura traços negros e indígenas com a herança dos colonizadores europeus. Esse caldeirão étnico, que contribuiu para dar visibilidade ao Brasil, foi por ao menos dois séculos apontado como um obstáculo para o desenvolvimento do país. Do ponto […]

NEGROS: eles, que antes viviam marginalizados, agora aparecem com destaque num universo onde a cor e a tradição atravessam as fronteiras sociais, ressaltando a verdadeira beleza nacional / Franco Origlia / Getty Images (Franco Origlia/Getty Images)
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Da Redação

Publicado em 4 de julho de 2016 às 13h03.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h10.

Já virou senso comum falar sobre a miscigenação da população brasileira. Um povo que mistura em sua cultura traços negros e indígenas com a herança dos colonizadores europeus. Esse caldeirão étnico, que contribuiu para dar visibilidade ao Brasil, foi por ao menos dois séculos apontado como um obstáculo para o desenvolvimento do país. Do ponto de vista social, esta compreensão do “tudo junto e misturado” serviu também para encobrir preconceitos sociais e étnicos e manter nas camadas de maior renda uma população majoritariamente branca. O processo de redução da desigualdade econômica que se consolidou no Brasil a partir do Plano Real começou a criar novas nuances nesse cenário.

Hoje é difícil definir uma típica família brasileira. Encontrar um rosto que identifique um todo dentro desta diversidade então, é quase impossível. Somos pardos nipônicos, negros com olhos de mel e loiros com vastas cabeleiras crespas, que contradizem qualquer estereótipo pré-definido e tornam o nosso passaporte um dos mais desejáveis para falsificadores. No entanto, muitas vezes essa mistura acaba por encobrir preconceitos e desigualdades que sempre estiveram presentes em nossa história. Ainda hoje, temos muito mais negros entre a população mais pobre e muito mais brancos na elite econômica do Brasil. Esse fenômeno coloca a questão racial como uma das mais difíceis de serem resolvidas, já que temos pouquíssimos negros nas estruturas de poder. A boa notícia é que como a nova classe média é fruto direto da redução das desigualdades (históricas, mas ainda presente), ela tem na diversidade étnica-regional uma de suas maiores características. A ascensão econômica da população negra amplia as possibilidades de, enfim, reduzirmos um conjunto de preconceitos que insistem em permanecer em nossa cultura.

Com o crescimento da classe média através da redução das desigualdades históricas de gênero, cor da pele e desenvolvimento regional, surgiu uma demanda econômica de inserir no cenário de consumo novos protagonistas. As telenovelas, até então acostumadas a colocar o negro numa posição servil aos brancos, agora colocam-no em posição de destaque em suas produções. São protagonistas que fogem do padrão desgastado e irreal do estereótipo étnico europeu, fazendo um resgate às origens e criando identificação com o público das classes emergentes. Até mesmo o padrão de beleza que fazia com que mulheres negras muitas vezes fossem caracterizadas com signos comuns a mulheres brancas, alisando os cabelos crespos e adotando tons neutros, que não contrastavam com seu tom de pele, mudou.

Não preciso dizer aqui que racismo e preconceito ocorrem em todas as classes sociais e, portanto, nunca serão resolvidos com a simples melhora do poder aquisitivo ou dos níveis educacionais. Mas o fato é que o país estava acostumado a somar ao preconceito étnico a discriminação financeira. Com o avanço econômico, começamos a caminhar num sentido de quebra de um paradigma, conservado por centenas de anos mesmo após a abolição da escravatura. A valorização da etnia é conquistada através da melhora da autoestima. São milhões de pessoas que viram sua vida melhorar com a estabilidade da economia e o surgimento de uma gama de empregos formais que antes ou eram privilégios apenas de uma elite branca, ou até mesmo inexistiam. Ainda que como exceção à regra, começamos pouco a pouco a encontrar negros ocupando cargos de prestígio e frequentando lugares que eram restritos apenas aos brancos detentores de uma renda que passava distante de suas possibilidades. Para eles, sobravam os empregos de menor remuneração. Em paralelo, detectamos um desconforto nas camadas de maior renda com a ascensão social desta importante e majoritária parcela da população.

Negros que viviam marginalizados agora aparecem com destaque num universo onde a cor e a tradição atravessam as fronteiras sociais, ressaltando a verdadeira beleza nacional, antes vista somente com preconceito. São essas características, verde-amarelas heterogêneas, que fazem o nosso povo ser tão especial, com aspectos tão peculiares. No entanto, não devemos nos esquecer do mérito das lutas empreendidas pelos movimentos sociais de afirmação da identidade negra, nem das políticas públicas de inclusão que se fortalecem desde a redemocratização.

As mudanças que ocorrem hoje ainda não são suficientes para colocar um ponto final no preconceito cotidiano e naturalizado de nossa sociedade. Em muitos estabelecimentos comerciais, apesar de não acontecerem casos explícitos de discriminação racial, que seriam punidos pela lei, os negros ainda são obrigados a lidar com situações desagradáveis, decorrentes de mau atendimento.

O acesso ao crédito e a descoberta de um universo de consumo possibilitou aos negros uma ascensão econômica que embora esbarre em alguns valores arcaicos adquiridos pela elite, começa a ganhar fôlego e, finalmente, encontrar o seu lugar. A educação foi um destes lugares, pois ele passou a ter acesso não apenas aos bens de consumo, mas à universidade. Com isso, pode investir na educação do filho, e percebe agora a oportunidade de fugir de um ciclo vicioso. Hoje, é possível ver nas universidades, em cursos de diferentes áreas do conhecimento, um corpo de alunos cada vez mais heterogêneo. Com a ampliação da escolaridade, elevação da renda e maior acesso aos postos de trabalho, a população negra foi a que apresentou os maiores índices de mobilidade socioeconômica dos últimos anos.

A classe média atual é a mistura brasileira que não se restringe apenas a cor da pele, mas também se sustenta pelos valores. A tradição carnavalesca dos festejos populares e a alegria das cores primárias fundem-se com a garra daquele que veio de baixo e precisou juntar forças para não desistir e seguir em frente. Agora, com a oportunidade de crescimento, este cidadão multicores, antes encolhido perante a desigualdade social, encontra ferramentas e munições para lidar com as diferenças enraizadas. Prova que o que antes era visto como fraqueza, hoje torna-se sinônimo de força. Sobram exemplos de brasileiros que superaram as dificuldades educacionais, as barreiras étnicas e regionais e acabam servindo de inspiração para outros brasileiros que estão vencendo na vida sem ter que abrir mão de seus valores, de sua cultura e de sua origem.

Este avanço ainda está longe de ser uma conquista definitiva, pois não bastam apenas mudanças na renda – é preciso mudar a ideologia que está enraizada na cabeça das pessoas. No entanto, é inegável a constatação de que o crescimento da economia tem forçado diversos setores da sociedade a serem mais tolerantes e menos preconceituosos. Viva a diversidade.

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Já virou senso comum falar sobre a miscigenação da população brasileira. Um povo que mistura em sua cultura traços negros e indígenas com a herança dos colonizadores europeus. Esse caldeirão étnico, que contribuiu para dar visibilidade ao Brasil, foi por ao menos dois séculos apontado como um obstáculo para o desenvolvimento do país. Do ponto de vista social, esta compreensão do “tudo junto e misturado” serviu também para encobrir preconceitos sociais e étnicos e manter nas camadas de maior renda uma população majoritariamente branca. O processo de redução da desigualdade econômica que se consolidou no Brasil a partir do Plano Real começou a criar novas nuances nesse cenário.

Hoje é difícil definir uma típica família brasileira. Encontrar um rosto que identifique um todo dentro desta diversidade então, é quase impossível. Somos pardos nipônicos, negros com olhos de mel e loiros com vastas cabeleiras crespas, que contradizem qualquer estereótipo pré-definido e tornam o nosso passaporte um dos mais desejáveis para falsificadores. No entanto, muitas vezes essa mistura acaba por encobrir preconceitos e desigualdades que sempre estiveram presentes em nossa história. Ainda hoje, temos muito mais negros entre a população mais pobre e muito mais brancos na elite econômica do Brasil. Esse fenômeno coloca a questão racial como uma das mais difíceis de serem resolvidas, já que temos pouquíssimos negros nas estruturas de poder. A boa notícia é que como a nova classe média é fruto direto da redução das desigualdades (históricas, mas ainda presente), ela tem na diversidade étnica-regional uma de suas maiores características. A ascensão econômica da população negra amplia as possibilidades de, enfim, reduzirmos um conjunto de preconceitos que insistem em permanecer em nossa cultura.

Com o crescimento da classe média através da redução das desigualdades históricas de gênero, cor da pele e desenvolvimento regional, surgiu uma demanda econômica de inserir no cenário de consumo novos protagonistas. As telenovelas, até então acostumadas a colocar o negro numa posição servil aos brancos, agora colocam-no em posição de destaque em suas produções. São protagonistas que fogem do padrão desgastado e irreal do estereótipo étnico europeu, fazendo um resgate às origens e criando identificação com o público das classes emergentes. Até mesmo o padrão de beleza que fazia com que mulheres negras muitas vezes fossem caracterizadas com signos comuns a mulheres brancas, alisando os cabelos crespos e adotando tons neutros, que não contrastavam com seu tom de pele, mudou.

Não preciso dizer aqui que racismo e preconceito ocorrem em todas as classes sociais e, portanto, nunca serão resolvidos com a simples melhora do poder aquisitivo ou dos níveis educacionais. Mas o fato é que o país estava acostumado a somar ao preconceito étnico a discriminação financeira. Com o avanço econômico, começamos a caminhar num sentido de quebra de um paradigma, conservado por centenas de anos mesmo após a abolição da escravatura. A valorização da etnia é conquistada através da melhora da autoestima. São milhões de pessoas que viram sua vida melhorar com a estabilidade da economia e o surgimento de uma gama de empregos formais que antes ou eram privilégios apenas de uma elite branca, ou até mesmo inexistiam. Ainda que como exceção à regra, começamos pouco a pouco a encontrar negros ocupando cargos de prestígio e frequentando lugares que eram restritos apenas aos brancos detentores de uma renda que passava distante de suas possibilidades. Para eles, sobravam os empregos de menor remuneração. Em paralelo, detectamos um desconforto nas camadas de maior renda com a ascensão social desta importante e majoritária parcela da população.

Negros que viviam marginalizados agora aparecem com destaque num universo onde a cor e a tradição atravessam as fronteiras sociais, ressaltando a verdadeira beleza nacional, antes vista somente com preconceito. São essas características, verde-amarelas heterogêneas, que fazem o nosso povo ser tão especial, com aspectos tão peculiares. No entanto, não devemos nos esquecer do mérito das lutas empreendidas pelos movimentos sociais de afirmação da identidade negra, nem das políticas públicas de inclusão que se fortalecem desde a redemocratização.

As mudanças que ocorrem hoje ainda não são suficientes para colocar um ponto final no preconceito cotidiano e naturalizado de nossa sociedade. Em muitos estabelecimentos comerciais, apesar de não acontecerem casos explícitos de discriminação racial, que seriam punidos pela lei, os negros ainda são obrigados a lidar com situações desagradáveis, decorrentes de mau atendimento.

O acesso ao crédito e a descoberta de um universo de consumo possibilitou aos negros uma ascensão econômica que embora esbarre em alguns valores arcaicos adquiridos pela elite, começa a ganhar fôlego e, finalmente, encontrar o seu lugar. A educação foi um destes lugares, pois ele passou a ter acesso não apenas aos bens de consumo, mas à universidade. Com isso, pode investir na educação do filho, e percebe agora a oportunidade de fugir de um ciclo vicioso. Hoje, é possível ver nas universidades, em cursos de diferentes áreas do conhecimento, um corpo de alunos cada vez mais heterogêneo. Com a ampliação da escolaridade, elevação da renda e maior acesso aos postos de trabalho, a população negra foi a que apresentou os maiores índices de mobilidade socioeconômica dos últimos anos.

A classe média atual é a mistura brasileira que não se restringe apenas a cor da pele, mas também se sustenta pelos valores. A tradição carnavalesca dos festejos populares e a alegria das cores primárias fundem-se com a garra daquele que veio de baixo e precisou juntar forças para não desistir e seguir em frente. Agora, com a oportunidade de crescimento, este cidadão multicores, antes encolhido perante a desigualdade social, encontra ferramentas e munições para lidar com as diferenças enraizadas. Prova que o que antes era visto como fraqueza, hoje torna-se sinônimo de força. Sobram exemplos de brasileiros que superaram as dificuldades educacionais, as barreiras étnicas e regionais e acabam servindo de inspiração para outros brasileiros que estão vencendo na vida sem ter que abrir mão de seus valores, de sua cultura e de sua origem.

Este avanço ainda está longe de ser uma conquista definitiva, pois não bastam apenas mudanças na renda – é preciso mudar a ideologia que está enraizada na cabeça das pessoas. No entanto, é inegável a constatação de que o crescimento da economia tem forçado diversos setores da sociedade a serem mais tolerantes e menos preconceituosos. Viva a diversidade.

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