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A pandemia justifica gastos públicos ilimitados?

Nos Estados Unidos, o Congresso está considerando novos gastos que variam de 5% do PIB (republicanos) a 15% (democratas)

EUA: o país estuda um novo pacote de estimulo que pode chegar a 1 trilhão de dólares. (Sarah Silbiger/Reuters)
EUA: o país estuda um novo pacote de estimulo que pode chegar a 1 trilhão de dólares. (Sarah Silbiger/Reuters)
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Opinião

Publicado em 4 de agosto de 2020 às, 16h04.

Última atualização em 4 de agosto de 2020 às, 16h05.

CHICAGO – As economias avançadas já gastaram enormes quantias, proporcionando alívio pandêmico a famílias e pequenas e médias empresas. A perspectiva de junho do Fundo Monetário Internacional estima que, incluindo-se medidas fiscais e garantias de crédito, os gastos atingiram aproximadamente 20 pontos percentuais do PIB. Nos Estados Unidos, o Congresso está considerando novos gastos que variam de 5% do PIB (republicanos) a 15% (democratas). E ainda serão necessários mais gastos do governo e, portanto, empréstimos, no momento em que a pandemia terminar.

Economistas têm argumentado que as  atuais baixas taxas de juros significam que a dívida soberana permanece sustentável em níveis muito mais altos do que no passado. Eles estão certos, desde que o crescimento nominal do PIB retorne a um nível razoável, as taxas de juros permaneçam baixas e os futuros governos limitem seus gastos. Mesmo que as duas primeiras premissas sejam verdadeiras, cabe a nós avaliar a terceira e a qualidade dos gastos atuais.

Em tempos normais, governos responsáveis ​​buscam um equilíbrio ao longo do ciclo de negócios, pagando nas altas o que tomam emprestado nas baixas, com os grupos que se beneficiam durante a primeira fase, pagando durante a segunda. No entanto, não há chance de que as enormes dívidas acumuladas durante a atual crise sejam pagas em breve. Mesmo com impostos mais altos para os ricos – política que enfrentará intensa oposição e argumentos contra a austeridade que sufoca o crescimento – uma grande parte da dívida acumulada será repassada às futuras gerações.

No passado, essa dívida era mais fácil de pagar. Como um forte crescimento significou que cada sucessiva geração era mais rica, as dívidas passadas tornaram-se menores em relação à renda. Hoje,  porém, o envelhecimento da sociedade, o baixo investimento público e o morno crescimento da produtividade militam contra nossos filhos, que são muito mais ricos que nós.

Afinal, já estamos dando a eles dois enormes desafios: cuidar de nós quando nossos direitos acabam e pagar pelas mudanças climáticas, que não fizemos quase nada para combater. Pior ainda, tendo limitado nossos investimentos em saúde e educação, deixamos grande parte da próxima geração sem o instrumental necessário para viver vidas produtivas.

Ao limitar ainda mais a capacidade da próxima geração de fazer investimentos públicos, a dívida que repassamos provavelmente pesará sobre os rendimentos futuros. E se esgotarmos a capacidade geral de empréstimo agora, as gerações futuras não poderão gastar conforme necessitarem, caso se deparem com outra catástrofe "única no século", como as duas que experimentamos nos últimos 12 anos. A equidade intergeracional deve ser tão importante quanto a equidade  intrassocial para os que vivem hoje.

Em termos práticos, isso significa que a noção de que todos devam ser tratados porque a pandemia “não é culpa deles” se torna insustentável no mesmo instante. Enquanto muitos países compensam proprietários sem seguro atingidos por uma inundação localizada ou um terremoto, as pessoas em regiões não afetadas do país pagam por isso sem perceber (por meio de impostos mais altos) porque sabem que receberiam o mesmo tratamento. Com um choque do tamanho dessa pandemia, esse cálculo não funciona mais; inevitavelmente, o ônus deverá recair sobre as gerações futuras, que obviamente não têm responsabilidade pela pandemia ou pela resposta a ela.

Portanto, precisamos destinar nossos gastos com muito cuidado. À medida que a pandemia e suas consequências persistem, devemos mudar para proteger trabalhadores, não todos os empregos. Todos os trabalhadores demitidos deveriam, é claro, receber um nível decente de assistência pública, certamente até que o emprego, de um modo geral, comece a se recuperar. É moralmente correto que uma sociedade rica forneça uma rede de segurança para todos, e é do interesse de todos que os trabalhadores e seus filhos mantenham – ou até aprimorem – suas capacidades durante a pandemia.

Tendo feito isso, as autoridades deveriam ser mais discriminatórias com relação às empresas que apoiam, permitindo que o mercado faça a maior parte do trabalho. Por exemplo, em bairros normalmente prósperos, pequenas empresas abrem e fecham o tempo todo. Embora o fracasso seja doloroso para o proprietário, para a economia há poucos danos permanentes. Se houver demanda suficiente por flores quando a economia se recuperar, uma nova floricultura poderá abrir no local da antiga. Consequentemente, não é economicamente interessante para as autoridades manter a antiga floricultura no local, pagando seu aluguel, suas despesas e seus funcionários por tempo indeterminado.

Da mesma forma, autoridades não deveriam oferecer doações ou empréstimos subsidiados para que grandes empresas em dificuldades, como companhias aéreas e redes de hotéis, possam manter seus funcionários. Essas empresas manterão o excesso de funcionários apenas enquanto receberem os subsídios. Será muito mais barato para o governo apoiar trabalhadores demitidos por meio de seguro-desemprego do que pagar aos empregadores para mantê-los indefinidamente em suas folhas de pagamento enquanto suas atividades claramente desapareceram.

Grandes corporações que precisam de dinheiro para se manter operando podem tomar empréstimos nos mercados, estimulados pelos bancos centrais. Se eles estão endividados o bastante para que ninguém lhes empreste, podem reestruturar suas dívidas em processo de recuperação judicial e começar de novo.

Em algumas situações, no entanto, sem ajuda, empresas podem não conseguir lidar com as forças do mercado. Nas comunidades economicamente desfavorecidas, onde algumas pequenas empresas com dificuldades para recomeçar são vitais para a vida da comunidade, é desejável apoio por razões econômicas e sociais. Da mesma forma, enquanto os mercados tratam grandes empresas de maneira razoável, as médias empresas podem achar mais difícil obter financiamento, mesmo quando são viáveis. Se uma empresa economicamente viável, empregando 100 trabalhadores, fechar porque não teve receita durante a maior parte do ano, seus trabalhadores especializados serão dispensados, seus equipamentos serão vendidos em liquidação e as normas e rotinas que possibilitam seu funcionamento estarão perdidas para sempre. Mesmo que sua saída deixe um grande buraco econômico, uma startup não conseguiria assumir e preencher esse espaço facilmente.

Mas aqui também o respaldo público não deve ser grátis. Sempre que possível, o governo deveria garantir que o capital existente, seja de detentores de títulos ou acionistas, absorva uma parte justa das perdas antes que a assistência do governo comece e o ônus seja transferido para as futuras gerações.

Finalmente, sempre que possível, devemos aumentar os investimentos nos jovens como compensação parcial pelas dívidas que lhes estamos deixando. Por exemplo, precisamos gastar para reabrir escolas públicas com segurança e garantir as instalações necessárias para alunos cuja única opção seja o ensino a distância.

Hoje, os gastos do governo são necessários. Simplesmente porque os mercados de dívida soberana ainda não reagiram contrariamente a níveis extremamente altos de empréstimos e gastos, não devemos – pelo bem de nossos filhos – abrir mão da cautela.

Raghuram G. Rajan, ex-governador do Reserve Bank da Índia, é professor de finanças na Booth School of Business da Universidade de Chicago e autor, mais recentemente, do livro The Third Pillar: How Markets and the State Leave the Community Behind (O terceiro pilar: como mercados e Estado deixam a comunidade para trás).