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O que você pode fazer com aquilo que não pode mudar — um papo sobre HIV e AIDS

Segundo o IBGE, quase 1 milhão de pessoas convivem com o HIV no Brasil

 (Reprodução/Reprodução)
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Publicado em 9 de novembro de 2022 às, 18h42.

Por Renata Orrico

Segundo o IBGE, o Brasil tem quase 213 milhões de habitantes, e de acordo com o Ministério da Saúde, quase 1 milhão de pessoas convivem com o HIV.

Desde o primeiro caso identificado há 40 anos até os dias de hoje, um longo caminho foi percorrido. A ciência trouxe grandes avanços que permitem que qualquer pessoa que tenha o HIV, desde que fazendo o devido tratamento, possa viver tranquilamente com o vírus indetectável. Isso significa que o vírus não será transmitido pela relação sexual, e portanto, a pessoa não desenvolverá a AIDS.

Para aprofundar o assunto, entrevistamos Thais Renovatto, que é HIV positivo e compartilha sua trajetória a fim de ajudar numa sociedade mais acolhedora, livre de estigmas e preconceitos. Conversar com a Thaís foi um grande aprendizado para nós. Através do nosso bate-papo, percebemos que mesmo com tantos avanços na ciência e na medicina, a falta de clareza nas informações contribui, tanto com comportamentos preconceituosos, quanto para que o vírus siga como um risco latente até os dias de hoje.

E vamos à nossa entrevistada...

Thais é paulista, 39 anos, formada em Publicidade, Marketing, MKT Digital e pós-graduada em Gestão de Negócios. Atua há mais de 15 anos no mercado corporativo. Casada, mãe do João e da Olívia, de 5 e 4 anos respectivamente, sendo todos eles, marido e filhos, negativos do vírus.

É também palestrante e autora do livro "5 anos comigo" - que foi escolhido pelo selo de “novos talentos” da literatura brasileira da Editora Novo Século. É embaixadora do projeto "Crianças AIDS", que atende e dá suporte para até 50 famílias de crianças de 0 a 12 anos com HIV e para fechar, Dj nas horas vagas.

Legal lembrar que essa entrevista foi feita à 6 mãos entre as parceiras de conteúdo: Renata Orrico, Luah Galvão e Adriana Jarva, - ao final da matéria você encontra mais infos sobre esse projeto. E agora, vamos para a história que temos muito para compartilhar!

Thais descobriu o HIV em 2014, quando namorava fazia um pouco mais de 1 ano. O então namorado, era fumante e certo dia teve uma pneumonia, depois uma segunda. Ficou internado e foi piorando. Naquela época, ela trabalhava no Trade Marketing da Samsung.

“Meu namorado foi ficando muito mal, piorou muito, até que foi entubado. Sempre o acompanhei e estive com ele no hospital, mas teve um dia, acho que quando a família viu que ele não ia mais acordar, a mãe dele me chamou e disse: - ‘Olha Thais, como o hospital está sempre muito cheio dos seus amigos e amigos dele eu precisava falar com você; na realidade o que ele tem é AIDS em estágio terminal, já avançado’.

Quando ela me falou eu quase desmaiei!

Tinham muitas coisas diante das quais eu tinha dúvidas, mas naquele momento tudo fez sentido para mim. Quando fiz o exame, aliás o resultado do teste rápido, na verdade, só comprovou o que eu já tinha certeza: era HIV+ também.

A gente não usava preservativo, ele era meu namorado. Usamos no começo do relacionamento e nunca pedi exames para ele antes de tirar o preservativo. Foi uma mistura de ignorância com inocência.”

 "Eu era uma menina que vivia numa bolha e achava que isto era algo muito distante de mim, algo muito marginalizado.”

Convivendo com o vírus

Eu sempre fui uma pessoa muito positiva e para cima. Sempre tentei olhar tudo       pelo lado bom, e quando acontecia alguma coisa difícil, tentava agir racionalmente, foi o que eu tentei fazer naquele momento, diante daquela notícia.

Me cerquei de boas informações, e acho que essa foi a minha maior sacada. Tive um bom infectologista e contei com uma psicóloga especialista em situações trágicas. Antes dele falecer, ela foi me preparando para vários dos cenários que eu poderia enfrentar.

Logo que recebi o resultado foi um momento muito doloroso. Preferi não contar para as pessoas. Quando me perguntavam, eu falava que tinha dado negativo. Depois da morte dele, eu ia diariamente no hospital para querer saber mais, ficava atrás dos médicos para saber se ele e a família já sabiam da doença, mas por ética, os médicos não podiam me falar nada.

Passaram-se aproximadamente 6 meses e marquei com a mãe dele para conversarmos. Eu disse que tinha o direito de saber a verdade, se ele tinha conhecimento sobre a sua doença, mas ela afirmou que todos ficaram sabendo apenas quando ele foi para o hospital.

Resolvi mesmo ainda tendo as minhas dúvidas, que eu precisava seguir a minha vida. Precisei digerir o assunto, tirei um ano, viajei e com orientação do meu médico comecei meu tratamento.

Eu o perdoei para mim, para me sentir leve, eu não queria carregar este peso.”

Indetectável = intransmissível

Quando uma pessoa que convive com o vírus do HIV, e esse apresenta uma carga viral baixa, é considerada uma carga indetectável, logo ela não é capaz de infectar outra pessoa com o vírus e nem de desenvolver a AIDS.

Uma vez indetectável, é possível até planejar uma gravidez com maior segurança, pois, as chances de transmissão são baixas. O ideal é que a pessoa esteja com carga viral indetectável há pelo menos 6 meses, e que ao longo da gestação, seu tratamento seja monitorado em relação à toxicidade, fazendo exames de controle junto aos cuidados gerais comuns à toda gestação.

“Eu tenho tão pouco vírus no meu corpo, que a doença não evolui. Sou indetectável, que é o mesmo que não transmissível, eu não tenho o vírus nas vias sexuais, portanto, não transmito para ninguém.

Quando decidi engravidar já estava indetectável, então engravidei de forma natural. Fiz todo o acompanhamento para garantir que eu continuaria com a carga viral baixa, e segui o protocolo instituído no Brasil de não amamentar. Em alguns países, como na África por exemplo, as mães podem amamentar, pois muitos bebês sofrem de desnutrição. Mas logo nas primeiras semanas de vida, o bebê precisa tomar um xarope para a prevenção da transmissão do vírus.”

Tabus, Estigmas e Preconceitos

“A gente ainda tem muitos tabus. Tantas coisas mudaram sobre a doença, mas o estigma é muito parecido com o do que tínhamos nos anos 80. As pessoas ainda me fazem perguntas do tipo: ‘Como você separa as toalhas na sua casa?’. Quando a gente tem acesso à informação, ou quando temos algum caso próximo, começamos a nos informar um pouco mais. Eu por exemplo, sabia que você não pegava no beijo, mas não tinha noção que podia ser mãe.

A gente não tem uma mídia esclarecedora de massa, muito menos com constância, o que às vezes a gente vê é um pouco de informação no Dezembro Vermelho ou no Carnaval. Não temos um calendário informativo e tudo fica muito solto, é por isso que vemos tanta desinformação.

O preconceito que passei foi de algumas pessoas não quererem mais conviver comigo. E algumas se afastaram por medo. Eu passei por uma situação no trabalho em que uma pessoa não entrou no banheiro depois de eu ter usado. É lamentável nos dias de hoje as pessoas terem este tipo de reação por falta de informação. Eu não fico triste com elas, fico triste por elas."

Sou HIV positivo

Thais resolveu falar abertamente sobre a sua história depois que conheceu seu atual marido. Conforme eles foram se relacionando, ela contou sobre o seu diagnóstico.

“Na ocasião ele disse: ‘Que tipo de homem eu seria se não tivesse ao seu lado em um momento em que você precisa de mim?’” – ela nos contou.

Depois disso, muitas vezes ela ouvia brincadeiras a respeito da aparência de algumas pessoas relacionando o fato de estarem magras com a possibilidade de terem AIDS. Diante disso, resolveu não ficar mais omissa, ao contrário, quis ajudar como mensageira da informação: “Me fortaleci e contei para as pessoas! Comecei a falar abertamente sobre o assunto e explicar que elas estavam equivocadas. O intuito não era constranger ninguém, mas informar e esclarecer.”

As pessoas ficavam surpresas quando ela falava que tinha o vírus do HIV, e falar sobre o assunto foi deixando a Thais cada vez mais confortável para se expressar. Ela começou com um blog onde escrevia textos sobre o assunto. A ideia era extravasar e dividir seu sentimento, aos poucos foi surgindo a vontade de escrever um livro e publicar sua história.

Livro “5 anos comigo”

O livro nasceu e foi batizado de “5 anos comigo”. Nele Thais conta toda sua jornada, desde quando conheceu o seu ex-namorado, até a morte dele. Narra como foi pegar o resultado de um exame positivo, até a fase de aceitação. Depois segue compartilhando como foi voltar a se relacionar até as questões envolvendo a maternidade. O livro nasceu para contar que sua história deu certo. Para ela, o livro é sobre uma história de amor.

"Depois do livro, muita coisa mudou. Eu acolho pessoas todos os dias, e me tornei embaixadora do projeto Criança Aids.

Respondo a todos que me procuram para dar apoio, pois quando soube do meu diagnóstico, eu não tinha com quem falar e sei o quanto é angustiante.

Quando recebo mensagens de meninas dividindo o ultrassom de seus bebês, meninas que quando souberam do diagnóstico de HIV positivo queriam se suicidar, eu vejo que não passei por essa vida à toa. Algumas pessoas me procuram para falar que através da minha história, conseguiram lidar melhor com o seu diagnóstico e enxergar as coisas de forma mais positiva.”

O que você pode fazer com aquilo que você não pode mudar

"O HIV traz este pesar junto com o resultado positivo. É quase uma morte em vida, quase uma morte social. Existe um primeiro momento de luto, mas depois você tem que tomar as rédeas e seguir em paz com suas decisões. Mais um ponto importante que insisto é se conectar apenas com as informações reais, sem esquecer da sua espiritualidade.

Esse é o recado que eu sempre dou para quem acabou de pegar o resultado positivo: ‘Você não precisa suportar isso sozinha/o, compartilhe a sua história para não ficar tão pesado’. É muito bom ter alguém para dividir, uma rede de apoio é tão importante quanto o tratamento. O acolhimento e as informações são superimportantes.

Educo os meus filhos para que eles tenham orgulho de mim. Abri a minha sorologia para eles para que digam que estão aqui por conta da minha coragem.

Conto sobre o medicamento que tomo de uma forma lúdica, falo que tenho o bichinho da goiaba. ‘A mamãe tem que tomar o remedinho para o bichinho ficar dormindo’ – comento com meu filho mais velho.

Eu acho que não devemos banalizar, mas sim, tentar normalizar a conversa sobre o HIV. Se eu pudesse falar no café do meu trabalho que eu tenho HIV da mesma forma que uma pessoa fala que tem diabetes, seria ótimo. Quanto mais natural for conversar sobre o assunto, mais confortáveis e acolhidas se sentiriam as pessoas que tem o vírus. Talvez ninguém mais se sentisse mal ou com medo de compartilhar seu diagnóstico. E se não existisse este medo, muito mais pessoas iriam querer se testar e se tratar. E logicamente, com mais gente sabendo de sua condição, muito menor seria a própria transmissão.”

Essa foi mais uma conversa que sentimos alargar nossa visão de mundo. Foi ótimo ouvir nossa entrevistada compartilhando sua jornada de vida, suas dores e seus amores.

Algumas pessoas, assim como a Thais, fazem do seu sofrimento, um impulso para uma vida com mais sentido e propósito. O medo foi transformado em ignição e todo seu caminhar hoje tem um profundo desejo de auxílio ao próximo. Seus braços se abriram para acolher aquele que se sente em estado de vulnerabilidade, como ela já se sentiu um dia.

Para nós, inclusão, acolhimento e superação ficam como marcos de mais essa história. No fundo, todos querem e precisam se sentir incluídos e acolhidos para que possam seguir com a cabeça erguida e se expressar com naturalidade.

Que possamos abraçar mais do que julgar, afinal, todos temos nossas fragilidades.

(Ao final da matéria trazemos informações complementares para aqueles que querem se aprofundar no tema)

*Essa matéria faz parte de um projeto colaborativo de entrevistas com pessoas inspiradoras que nos encorajam a ampliar nossa visão de mundo.

As histórias trazem quebras de paradigmas e nos convidam a transcender nosso pensamento e observar através de uma nova janela: mais autêntica e cheia de singularidades.

Coletivo: Adriana Jarva, Renata Orrico e Luah Galvão - criadoras e entrevistadoras

INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES

Diferença entre HIV e AIDS

"O HIV é o vírus que ataca o sistema imunológico e deixa o organismo sem defesa contra outras infecções, provocando a imunodeficiência humana. O principal alvo do vírus HIV é o linfócito T-CD4+, que é um dos tipos de célula de defesa produzida pela glândula timo. Essa célula é responsável por organizar e comandar a resposta do sistema imunológico, pois consegue memorizar os tipos de micro-organismos que já infectaram o corpo e, assim, pode reconhecê-los e destruí-los.

Quando infecta uma pessoa, o vírus HIV se liga a um componente da membrana que reveste o linfócito T-CD4+ e o invade para se multiplicar. Ele altera o DNA do linfócito para que crie cópias do vírus. Depois que se multiplica, rompe e destrói o linfócito se ligando a outros para continuar sua multiplicação. Conforme a infecção pelo HIV avança, o sistema imunológico vai enfraquecendo até não conseguir mais combater outros agentes infecciosos.

Na medida em que se multiplica e destrói os linfócitos T-CD4+, o vírus HIV vai incapacitando o sistema imunológico da pessoa, permitindo que ela desenvolva outras doenças, que são chamadas de oportunistas. Quando isso acontece é que a pessoa desenvolve a AIDS. Ou seja, a diferença entre HIV e AIDS, é que HIV é o vírus que pode provocar a AIDS.

Isso leva um tempo para acontecer desde o momento em que alguém é infectado pelo HIV – e pode variar bastante. Quando a pessoa é infectada passa a ser soropositiva. Porém, muitos soropositivos podem viver anos com o vírus sem desenvolver a doença e ter sinais e sintomas de aids. No entanto, quem tem o vírus HIV pode transmiti-lo, porém, a pessoa que faz tratamento com antirretrovirais e tem a carga do vírus HIV indetectável em exames durante seis meses no mínimo, não o transmite em relações sexuais. O conceito de que o vírus indetectável é igual a intransmissível. 

Fonte: pfizer.com.br

Transmissão Vertical

O número de crianças com HIV+ tem diminuído ao longo dos anos no Brasil, mas as estatísticas ainda estão longe de serem ideais. O Ministério da Saúde estima que 12,5 mil recém-nascidos sejam expostos ao vírus anualmente. Os dados mundiais também são alarmantes: há 2,1 milhões de crianças que vivem com AIDS. A diminuição das estatísticas brasileiras se deve, principalmente, à administração do antiviral AZT Infantil em recém-nascidos.

O medicamento é um coquetel de diversas substâncias – entre antibióticos e antivirais – que substituem um grande número de cápsulas e que pode ser aplicado via oral (xarope) ou injetado.

Este protocolo, estabelecido pelo Ministério da Saúde, é aplicado no caso de gestantes soropositivas para prevenção da transmissão do HIV da mãe para a criança, a chamada transmissão vertical. O tratamento começa com a gestante no momento do parto: a mãe recebe o AZT por via endovenosa e a criança, ao nascer recebe o medicamento por via oral durante quatro semanas.

Essas medidas reduzem a chance de contaminação de 70% para menos de 1%. Apesar da pouca probabilidade de contaminação, a criança deve ser acompanhada por pediatras especialistas até a adolescência.

(Fonte Finep Inovação e Pesquisa)