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Tempo: amigo ou inimigo?

A história e a cultura ainda insistem em colocar a mulher em posições que priorizam o cuidado com a casa e com os filhos

Relógio da marca Rolex (Divulgação/Divulgação)
Relógio da marca Rolex (Divulgação/Divulgação)
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Nosso Olhar

Publicado em 17 de setembro de 2020 às, 12h49.

Uma sociedade com equidade de gênero não é gentileza, é negócio. Mulheres e homens podem e devem alcançar lugares de poder. Não por uma questão apenas filosófica, mas porque ter mulheres no poder significa crescimento econômico. A história e a cultura ainda insistem em colocar a mulher em posições que priorizam o cuidado com a casa e com os filhos. De novo, isso é uma construção cultural. Nada mais. Por isso podemos e devemos ressignificar qual é o papel da mulher e do homem em uma cultura que pede mudanças. Que pede transformações para que tenhamos uma sociedade próspera e justa. E uma sociedade justa é uma sociedade igual. Quando pensamos que as mulheres ainda são praticamente as únicas responsáveis pela casa e pelo cuidado com os filhos tem um grande problema aí: elas têm menos tempo para as suas carreiras. E tempo é inexorável. Mesmo tentando organizar com todas as melhores técnicas de “time management” – não há organização que funcione quando a mulher ainda sente que precisa dar conta de tudo. Uma das pontas vai falhar.

Não é nada incomum a sensação do dia passar voando sem ser possível concluir todas as tarefas que precisávamos. E tudo é mais difícil quando se tem uma jornada tripla, ou seja, filhos, serviço doméstico e trabalho. E muitas mulheres não têm com quem ao menos dividir duas dessas responsabilidades. Segundo o IBGE, no Brasil temos mais de 34 milhões de lares chefiados por mulheres. Também segundo o instituto, mulheres dedicam quase duas vezes mais horas que os homens aos afazeres domésticos. A atenção a esses serviços ou ao cuidado de pessoas é de 10,4 horas semanais a mais no caso das mulheres. E as mulheres que trabalham fora dedicam em média 8,1 horas a mais a essas atividades do que os homens que trabalham.

Isso em um cenário normal. Temos que considerar que agora vivemos em uma pandemia. Com as escolas fechadas, 43% das mulheres entrevistadas em uma pesquisa global da Ipsos com a ONU Mulheres concordaram fortemente com a frase: "Tive que assumir muito mais responsabilidade pelas tarefas domésticas e cuidados com crianças e família durante esta pandemia", contra 35% dos homens. Já a Datafolha aponta que cinco em cada dez mulheres em home office passaram a acumular a maior parte do cuidado com a casa. No caso dos homens, isso ocorreu com dois em cada dez. Por fim, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica de Londres, as mães são 47% mais propensas que os pais a perderem permanentemente o emprego ou deixarem o cargo com a crise da Covid-19.

Nosso lar, que deveria ser o lugar para aproveitarmos os momentos em família e de descanso virou um fardo ao se tornar ao mesmo tempo escola e escritório. Isso não é difícil de reverter, mas precisamos urgentemente de uma mudança cultural. A divisão do trabalho doméstico é fundamental para termos mais equilíbrio na nossa rotina. É preciso entender que esse trabalho não remunerado, de cuidar da casa, também é um trabalho. Um privilégio de quem pode pagar para alguém fazê-lo, mas não é a realidade de muitas pessoas. Essa longa jornada à qual muitas mulheres se submetem, por não ter opção, é muito desgastante. E quando estamos cansadas certamente não vamos ter a mesma performance em nossos empregos remunerados.

A McKinsey estima que empresas com mais mulheres tendem a ter um faturamento 15% maior. Imagine qual seria a produtividade se mais mulheres não estivessem tão sobrecarregadas. Mas também temos esse número: um levantamento de 2015 da McKinsey aponta que mais equidade nos setores público, privado e social poderia gerar US$ 12 trilhões no crescimento global até 2025.

O relatório “Mulheres na gestão empresarial: argumentos para uma mudança” da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta que para mais de 75% das 13 mil empresas que participaram do levantamento, em 70 países, as iniciativas em favor da diversidade de gênero contribuíram para melhorar seu rendimento, com lucro entre 5% e 20%. A diversidade também ajudou a atrair e reter talentos em 57% das empresas e mais de 54% das participantes relataram melhora na criatividade e inovação. Ou seja, precisamos de mais mulheres na liderança para melhorar a economia como um todo. E para serem líderes, elas precisam poder se dedicar mais às suas carreiras. Como o tempo do dia é limitado, elas precisam estar menos sobrecarregadas com outras tarefas.

Muitas mulheres acabam optando por empregos com jornadas menores justamente para conseguirem conciliar com os serviços domésticos e cuidados com os filhos. Muitas mulheres que decidem seguir seus sonhos profissionais acabam optando por não terem filhos, porque sabem que não terão tempo para assumir cargos de liderança e a maternidade. Isso não é um problema se for uma escolha delas, mas não pode ser a única opção. Para se dedicar às questões de saúde e educação dos filhos é necessário ter uma rede de apoio no caso das mães solo. Para os casais, um deve ajudar o outro. Da mesma forma o serviço doméstico deve ser encarado como responsabilidade conjunta. Não faz mais sentido essa construção de que mulheres são responsáveis pelo lar e os homens são os provedores.

Vamos desconstruir. Os papéis podem se inverter. Os papéis podem se equilibrar. Só assim começamos a criar um cenário de mais igualdade que irá ter efeito sobre as empresas e a sociedade no geral. Temos muito ainda para transformar para tornar o mundo mais justo, mas primeiro podemos e devemos começar dentro de casa. Nas nossas famílias. Como será que essa mudança pode acontecer hoje? Homens e mulheres devem se dividir melhor em todas as tarefas. Sem culpa, sem medo, sem vergonha. Seja exemplo da mudança. Uma mulher na liderança não é uma ameaça, é agente de transformação, é crescimento. E para chegar lá ela não precisa ter que escolher. Ela precisa de tempo.