Um breve comentário sobre a “Carta aos Brasileiros” original e seu autor
Muito se falou da carta original, mas foram poucas menções ao autor do texto ou ao seu conteúdo
Publicado em 1 de agosto de 2022 às, 11h14.
Aluizio Falcão Filho
Na semana passada, um manifesto pela democracia sacudiu o cenário político de forma veemente. O texto, que possui atualmente cerca de 600.000 adesões, começa assim: “Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no país, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte”.
O documento foi subscrito por dois banqueiros, Roberto Setúbal e Pedro Moreira Salles, que representam apenas uma instituição, o Itaú. Foi o suficiente para que o presidente Jair Bolsonaro questionasse o conteúdo. Para ele, os bancos tinham perdido rentabilidade com a instituição do PIX, uma criação de seu governo, e isso colocou a dupla argentária entre os signatários do documento. Talvez se a carta fosse subscrita por pelo menos mais dez banqueiros essa argumentação faria sentido. Mas, entre as 600 000 assinaturas, há a de um ex-presidente do mesmo Itaú, Cândido Botelho Bracher, e o do ex-CEO do Credit Suisse no Brasil, José Olympio, cuja instituição tem fontes de receita maiores que as tarifas de TED e de DOC.
Muito se falou da carta original, mas foram poucas menções ao autor do texto ou ao seu conteúdo.
Goffredo da Silva Telles Júnior é uma das maiores lendas do Direito brasileiro. Nascido em 1915 e formado pela Universidade de São Paulo em 1937, era conservador e foi deputado em 1946, eleito pelo PRP, então de orientação integralista. Foi o primeiro marido da escritora Lygia Fagundes Telles, morta em abril deste ano – e o “Telles”, nome de casada, foi mantido após a separação, em 1960. O jurista, depois de sete anos, casaria com Maria Eugênia, com quem permaneceria unido até seu falecimento, em 2009.
Alguns trechos de sua carta, lida na faculdade do Largo de São Francisco (imagem), permanecem atuais até hoje. Naquela época, Telles se manifestava contra a Ditadura. A carta deste ano, no entanto, reforça a necessidade de permanecermos dentro do regime democrático.
Abaixo, temos algumas passagens do texto original. As letras maiúsculas presentes na redação original, que em algumas passagens não seguem a regra gramatical, foram mantidas para demonstrar a linha de raciocínio de seu autor:
“Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder”.
“Não nos podemos furtar ao dever de advertir que o exercício do Poder Constituinte, por autoridade que não seja o Povo, configura, em qualquer Estado democrático, a prática de usurpação de poder político”.
“Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional. O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à Constituição. Bem simples é este princípio, mas luminoso, porque se ergue, como barreira providencial, contra o arbítrio de vetustos e renitentes absolutismos”.
“Nos países adiantados, em que a cultura política já organizou o Estado de Direito, a insólita implantação do Estado de Fato ou de Exceção do Estado em que o Presidente da República volta a ser o monarca lege solutus constitui um violento retrocesso no caminho da cultura. Uma vez reimplantado o Estado de Fato, a Força torna a governar, destronando o Poder. Então, bens supremos do espírito humano, somente alcançados após árdua caminhada da inteligência, em séculos de História, são simplesmente ignorados”.
“Declaramos falsa a vulgar afirmação de que o Estado de Direito e a Democracia são “a sobremesa do desenvolvimento econômico”. O que temos verificado, com frequência, é que desenvolvimentos econômicos se fazem nas mais hediondas ditaduras”.
“Nos Estados de Fato, a Sociedade Civil é banida da vida política da Nação. Pelos chefes do Sistema, a Sociedade Civil é tratada como um confuso conglomerado de ineptos, sem discernimento e sem critério, aventureiros e aproveitadores, incapazes para a vida pública, destituídos de senso moral e de idealismo cívico. Um a multidão de ovelhas negras, que precisa ser continuamente contida e sempre tangida pela inteligência soberana do sábio tutor da Nação”.
“Neste preciso momento histórico, reassume extraordinária importância a verificação de um fato cósmico. Até o advento do Homem no Universo, a evolução era simples mudança na organização física dos seres. Com o surgimento do Homem, a evolução passou a ser, também, um movimento da consciência”.
“O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já”.
Lendo esse texto, que possui 14 páginas (incluindo as assinaturas de juristas e políticos, como o ex-governador André Franco Montoro), fico matutando: este seria um mundo melhor se contássemos com a serenidade e a inteligência de Goffredo Telles Júnior.