“The Crown”: a Margaret Thatcher que conheci
Por conta desses momentos em que estive com Thatcher, percebo duas falhas no roteiro ao retratar a primeira-ministra inglesa
isabelarovaroto
Publicado em 20 de novembro de 2020 às 13h17.
A série “The Crown”, exibida pela Netflix, chegou à quarta temporada e novos personagens são introduzidos na saga da rainha Elizabeth – a primeira-ministra Margaret Thatcher e a princesa Diana. Tive o privilégio de conhecer a premiê em 1993, quando o então banco Garantia propôs à EXAME que firmássemos uma parceria para trazê-la ao Brasil. Fui encarregado pela revista, então, a acompanhá-la em alguns eventos durante sua estada no país – incluindo coordenar a entrevista coletiva que ela daria à imprensa nacional.
Por conta desses momentos em que estive com Thatcher, consigo enxergar brilhantismo no trabalho de Gillian Anderson ao assumir o papel da Dama de Ferro. Embora Lady Thatcher não tivesse uma voz tão rouca como a que a atriz utiliza, o ritmo e as micro pausas de suas frases são inacreditavelmente iguais. Os maneirismos, como a cabeça inclinada ao falar, são igualmente semelhantes. Mas percebo duas falhas no roteiro ao retratar a primeira-ministra inglesa.
A primeira é apresentá-la como uma pessoa séria em 100 % do tempo. Ela, porém, se permitia a momentos de descontração (contida, é verdade – afinal, estamos falando de uma dama inglesa) e ironia. Sorria com pouca frequência, mas sorria. Já a personagem da série da Netflix nunca dá risada ou se alegra.
Pude notar que ela se divertia e dava sorrisos imperceptíveis quando uma ideia se formava em sua cabeça. No seminário em que EXAME organizou com o Garantia, por exemplo, um empresário perguntou por que ela defendia reduzir o Estado, se no Brasil ocorria o contrário. Vi o pequeno riso se formar e a resposta veio aguda: “Defendo um Estado pequeno e forte e o que me parece é que o que vocês têm no Brasil é exatamente o inverso, ou seja, um Estado grande e fraco”. Ela, então, abriu um largo sorriso e recebeu uma salva de palmas.
A outra imprecisão que percebi é não dar importância à curiosidade intelectual de Thatcher. Ela é retratada como uma workaholic compulsiva e sem interesses além do trabalho. Porém, pude observar, nesse exíguo tempo em que desfrutei de sua companhia, que ela tinha interesse genuíno pelas pessoas e por suas atividades, fazendo sempre perguntas pertinentes e interessantes a seus interlocutores.
Na interpretação de Gillian Anderson, nota-se um cuidado especial à movimentação dos lábios – de fato, uma característica marcante da chefe de Estado. Mas, para mim, o atributo físico que me marcou mais foi o olhar da premiê. Os olhos, de um azul escuro profundo, eram implacáveis. Durante sua entrevista coletiva, um jornalista que havia morado em Londres chamou a atenção para o crescimento de mendigos na cidade durante sua gestão. Ela negou. Observei, então, que havia estado recentemente na capital inglesa e que havia visto muitos sem-teto na estação de Charing Cross. Ele me fulminou com um olhar gelado e admitiu que havia alguns. Lembro até hoje daquele daquela espreitadela sombria. E confesso que demorei alguns segundos para voltar à temperatura normal depois de ter encarado aqueles “old blue eyes”.
Logo depois destes tensos segundos, houve um momento de descontração. A entrevista acabou e um fã da primeira-ministra, que tinha pintado um quadro dela, me pediu que eu o segurasse para que Lady Thatcher pudesse autografá-lo. Peguei a pintura e olhei para ela, sem dizer uma palavra. Maggie (seu apelido junto aos britânicos) sorriu, sacou a caneta que a assistente, uma moça simpática chamada Cinthia Crawford, lhe estendia e autografou a tela. Nessa hora, todos os cinegrafistas e fotógrafos se aproximaram. Apareci involuntariamente no Jornal Nacional como o fã que pedira um autógrafo à primeira-ministra inglesa.
Após essa coletiva, num intervalo que tivemos juntos, aproveitei para fazer algumas perguntas. Uma delas foi justamente sobre a diferença entre os presidentes Ronald Reagan e George Bush (pai). Thatcher nutria grande admiração por Reagan e vi seus olhos brilharem quando relatava casos que reforçavam a liderança e o savoir-faire do ator que se transformara em presidente. O olhar voltou à frieza normal quando começou a falar de Bush e narrou um conflito no Oriente Médio no qual Thatcher pedia uma intervenção dos Estados Unidos. Bush retrucou que precisava, antes, buscar o consenso dos demais países da Otan. Ela protestou e respondeu com uma frase que guardo até hoje: “O consenso é a negação da liderança”.
A última vez que estive com ela foi num almoço realizado no palacete erguido por Veridiana Prado em 1884 e que hoje serve como sede do Iate Clube de Santos em São Paulo. Antes da refeição, haveria um coquetel. O que servir a ela? Jorge Paulo Lemann matou a charada com alguns telefonemas e descobriu que Thatcher gostava do uísque The Famous Grouse, devidamente comprado para acompanhar os canapés.
Começou o serviço e me instalei em uma roda com empresários que conhecia. Passou o garçom, oferecendo bebidas. Um pediu um guaraná; outro um suco de tomates. Escolhi uma dose do Famous Grouse sem gelo. A Dama de Ferro chegou até essa rodinha e olhou para os copos, decepcionada: “Esses homens não bebem?”, perguntou ela. Dei um sorriso e mostrei meu cálice. Ela quis uma dose do mesmo uísque e assistiu, impávida, os empresários pedirem atabalhoadamente um scotch para fazer companhia àquela mulher poderosa. Só que preferiram o Johnnie Walker Black Label que estava na bandeja do garçom. E ainda exigiram gelo e club soda para diluir a bebida. Foi o suficiente para que ela não os levasse a sério.
Ela balançou a cabeça brindou apenas meu copo – um brinde acompanhado de uma piscadela. Tomou alguns goles, fez perguntas sobre as empresas de quem a cercava e, minutos depois, se despediu, para se ajeitar em seu lugar na mesa e proferir um speech completamente diferente da palestra do dia anterior.
Thatcher foi uma figura criticada pela esquerda por seu conservadorismo e por um episódio no qual vetou sanções econômicas ao regime racista da África do Sul (devido ao superávit comercial de exportações que o Reino Unido tinha com aquele país). Mas foi ela quem conseguiu recolocar a Inglaterra nos trilhos e mostrou que o caminho para a prosperidade passa necessariamente pelo enxugamento do Estado, redução das despesas públicas e fortalecimento da iniciativa privada. Por essa proeza e por ser uma fã do Famous Grouse, ela está em meu Panteão de pessoas inesquecíveis. Estes também são os motivos para que eu recomende fortemente a atual temporada de “The Crown”. Trata-se daquele momento em que acontecimentos históricos se transformam em diversão de primeira qualidade.
A série “The Crown”, exibida pela Netflix, chegou à quarta temporada e novos personagens são introduzidos na saga da rainha Elizabeth – a primeira-ministra Margaret Thatcher e a princesa Diana. Tive o privilégio de conhecer a premiê em 1993, quando o então banco Garantia propôs à EXAME que firmássemos uma parceria para trazê-la ao Brasil. Fui encarregado pela revista, então, a acompanhá-la em alguns eventos durante sua estada no país – incluindo coordenar a entrevista coletiva que ela daria à imprensa nacional.
Por conta desses momentos em que estive com Thatcher, consigo enxergar brilhantismo no trabalho de Gillian Anderson ao assumir o papel da Dama de Ferro. Embora Lady Thatcher não tivesse uma voz tão rouca como a que a atriz utiliza, o ritmo e as micro pausas de suas frases são inacreditavelmente iguais. Os maneirismos, como a cabeça inclinada ao falar, são igualmente semelhantes. Mas percebo duas falhas no roteiro ao retratar a primeira-ministra inglesa.
A primeira é apresentá-la como uma pessoa séria em 100 % do tempo. Ela, porém, se permitia a momentos de descontração (contida, é verdade – afinal, estamos falando de uma dama inglesa) e ironia. Sorria com pouca frequência, mas sorria. Já a personagem da série da Netflix nunca dá risada ou se alegra.
Pude notar que ela se divertia e dava sorrisos imperceptíveis quando uma ideia se formava em sua cabeça. No seminário em que EXAME organizou com o Garantia, por exemplo, um empresário perguntou por que ela defendia reduzir o Estado, se no Brasil ocorria o contrário. Vi o pequeno riso se formar e a resposta veio aguda: “Defendo um Estado pequeno e forte e o que me parece é que o que vocês têm no Brasil é exatamente o inverso, ou seja, um Estado grande e fraco”. Ela, então, abriu um largo sorriso e recebeu uma salva de palmas.
A outra imprecisão que percebi é não dar importância à curiosidade intelectual de Thatcher. Ela é retratada como uma workaholic compulsiva e sem interesses além do trabalho. Porém, pude observar, nesse exíguo tempo em que desfrutei de sua companhia, que ela tinha interesse genuíno pelas pessoas e por suas atividades, fazendo sempre perguntas pertinentes e interessantes a seus interlocutores.
Na interpretação de Gillian Anderson, nota-se um cuidado especial à movimentação dos lábios – de fato, uma característica marcante da chefe de Estado. Mas, para mim, o atributo físico que me marcou mais foi o olhar da premiê. Os olhos, de um azul escuro profundo, eram implacáveis. Durante sua entrevista coletiva, um jornalista que havia morado em Londres chamou a atenção para o crescimento de mendigos na cidade durante sua gestão. Ela negou. Observei, então, que havia estado recentemente na capital inglesa e que havia visto muitos sem-teto na estação de Charing Cross. Ele me fulminou com um olhar gelado e admitiu que havia alguns. Lembro até hoje daquele daquela espreitadela sombria. E confesso que demorei alguns segundos para voltar à temperatura normal depois de ter encarado aqueles “old blue eyes”.
Logo depois destes tensos segundos, houve um momento de descontração. A entrevista acabou e um fã da primeira-ministra, que tinha pintado um quadro dela, me pediu que eu o segurasse para que Lady Thatcher pudesse autografá-lo. Peguei a pintura e olhei para ela, sem dizer uma palavra. Maggie (seu apelido junto aos britânicos) sorriu, sacou a caneta que a assistente, uma moça simpática chamada Cinthia Crawford, lhe estendia e autografou a tela. Nessa hora, todos os cinegrafistas e fotógrafos se aproximaram. Apareci involuntariamente no Jornal Nacional como o fã que pedira um autógrafo à primeira-ministra inglesa.
Após essa coletiva, num intervalo que tivemos juntos, aproveitei para fazer algumas perguntas. Uma delas foi justamente sobre a diferença entre os presidentes Ronald Reagan e George Bush (pai). Thatcher nutria grande admiração por Reagan e vi seus olhos brilharem quando relatava casos que reforçavam a liderança e o savoir-faire do ator que se transformara em presidente. O olhar voltou à frieza normal quando começou a falar de Bush e narrou um conflito no Oriente Médio no qual Thatcher pedia uma intervenção dos Estados Unidos. Bush retrucou que precisava, antes, buscar o consenso dos demais países da Otan. Ela protestou e respondeu com uma frase que guardo até hoje: “O consenso é a negação da liderança”.
A última vez que estive com ela foi num almoço realizado no palacete erguido por Veridiana Prado em 1884 e que hoje serve como sede do Iate Clube de Santos em São Paulo. Antes da refeição, haveria um coquetel. O que servir a ela? Jorge Paulo Lemann matou a charada com alguns telefonemas e descobriu que Thatcher gostava do uísque The Famous Grouse, devidamente comprado para acompanhar os canapés.
Começou o serviço e me instalei em uma roda com empresários que conhecia. Passou o garçom, oferecendo bebidas. Um pediu um guaraná; outro um suco de tomates. Escolhi uma dose do Famous Grouse sem gelo. A Dama de Ferro chegou até essa rodinha e olhou para os copos, decepcionada: “Esses homens não bebem?”, perguntou ela. Dei um sorriso e mostrei meu cálice. Ela quis uma dose do mesmo uísque e assistiu, impávida, os empresários pedirem atabalhoadamente um scotch para fazer companhia àquela mulher poderosa. Só que preferiram o Johnnie Walker Black Label que estava na bandeja do garçom. E ainda exigiram gelo e club soda para diluir a bebida. Foi o suficiente para que ela não os levasse a sério.
Ela balançou a cabeça brindou apenas meu copo – um brinde acompanhado de uma piscadela. Tomou alguns goles, fez perguntas sobre as empresas de quem a cercava e, minutos depois, se despediu, para se ajeitar em seu lugar na mesa e proferir um speech completamente diferente da palestra do dia anterior.
Thatcher foi uma figura criticada pela esquerda por seu conservadorismo e por um episódio no qual vetou sanções econômicas ao regime racista da África do Sul (devido ao superávit comercial de exportações que o Reino Unido tinha com aquele país). Mas foi ela quem conseguiu recolocar a Inglaterra nos trilhos e mostrou que o caminho para a prosperidade passa necessariamente pelo enxugamento do Estado, redução das despesas públicas e fortalecimento da iniciativa privada. Por essa proeza e por ser uma fã do Famous Grouse, ela está em meu Panteão de pessoas inesquecíveis. Estes também são os motivos para que eu recomende fortemente a atual temporada de “The Crown”. Trata-se daquele momento em que acontecimentos históricos se transformam em diversão de primeira qualidade.