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Sergio Moro e sua fábrica de salsichas

Nada exemplifica melhor uma máquina genérica de fabricar salsichas como um grampo telefônico ou presencial

Sergio Moro (Adriano Machado/Reuters)
Sergio Moro (Adriano Machado/Reuters)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 8 de março de 2021 às, 08h44.

Uma frase falsamente atribuída ao chanceler alemão Otto Von Bismarck diz o seguinte: “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”. Essa máxima, cuja autoria verdadeira é do poeta americano John Godfrey Saxe, revela em si uma mensagem preciosa – a de que, muitas vezes, é melhor não saber como são feitas certas coisas.

Essa sentença vale para inúmeros assuntos além das leis e das salsichas e geralmente mostra que a ignorância e a ingenuidade podem ser uma bênção. Essa mensagem pode cair feito uma luva para certas decisões empresariais, religiosas ou esportivas. Mas, quando isso ocorre – em qualquer campo de atividade – há um certo choque. E nada exemplifica melhor uma máquina genérica de fabricar salsichas como um grampo telefônico ou presencial. A gravação de uma conversa privada mostra as pessoas sem o polimento e sem os freios morais que elas utilizam em público.

Quando nos expressamos em reuniões, em transmissões radiofônicas ou televisivas, em salas do Clubhouse ou discursamos para plateias, nos refreamos e mostramos uma educação que, muitas vezes, não existe no universo particular.

Os palavrões de Aécio Neves em conversa com o empresário Joesley Batista são um bom exemplo disso. Outro é a desfaçatez com a qual o então diretor do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira disse ao então ministro das Comunicações no governo FHC, Luiz Carlos Mendonça de Barros que estavam “no limite da irresponsabilidade” durante o processo de privatização nas teles. E o que dizer do colóquio durante o qual os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff combinam o recebimento de um termo de posse do petista para o ministério? Essa gravação, aquela do “Bessias”, trouxe muita indignação à sociedade e virou o jogo de vez em favor da Lava-Jato.

Os militares, durante a ditadura, chamavam o grampo de “dragão”, mas essa gíria caiu em desuso com a redemocratização. “Ninguém sai ileso de um dragão”, dizia na redação de Veja nos anos 1980 o diretor-adjunto da revista na época, Elio Gaspari. Elio é um dos maiores jornalistas de todas as gerações brasileiras e foi um observador privilegiado de inúmeras transcrições de conversas privadas para escrever seus cinco livros sobre o regime militar. Para ele, o dragão era devastador porque mostrava pessoas com todos os seus defeitos, que muitas vezes, superam em muito suas qualidades.

É sob esse aspecto que os grampos da Vaza-Jato são enxergados por boa parte dos brasileiros. Moro, em sua coluna mais recente na revista Crusoé, afirma que o hackeamento dos arquivos de suas conversas no aplicativo Telegram não pode ser utilizado judicialmente (o que é verdade) e defende sua atuação como juiz no caso. Ele escreveu: “Houve alguma prova fraudada ou forjada contra algum acusado? Há mensagens que denotam motivações político-partidárias ou espúrias nos processos? Houve ocultação de provas que poderiam resultar na absolvição de algum acusado? As respostas são todas negativas para a frustração dos corruptos e de seus amigos”.

Moto tem razão no que diz, mas tem um problema diante de si: sua fábrica de salsichas foi desnudada ao público pelos grampos. Claramente se vê nos arquivos um juiz se alinhando com a acusação, quando – pelas regras brasileiras – o ideal seria que se mantivesse neutro. Mas o curioso é que a sociedade brasileira já sabia disso. Toda a notoriedade de Sergio Moro, diga-se, vinha da percepção popular de que ele estava empenhado em botar os corruptos na cadeia (ou seja, estava trabalhando em total alinhamento com a acusação).

Mas, se havia esse entendimento, por que o susto com certos conteúdos da Vaza-Jato? É o mesmo sobressalto que se tem ao observar qualquer outro método de fabricação de salsichas. Quando se lê o alinhamento absoluto entre promotoria e Magistrado, há uma surpresa na constatação de que a proximidade era tão grande. E, diante dessa situação, há quem tenha passado a rejeitar Moro (que ainda acumula muitos seguidores).

Voltemos ao autor da frase que inspira esse artigo. Saxon é conhecido não apenas por sua máxima sobre embutidos, mas também por ter adaptado um antigo conto indiano à língua inglesa no século 19. Trata-se de “Os Cegos e o Elefante”. Nesse texto, o rei da Índia resolve dar uma lição ao seus ministros e, para isso, chama vários cegos que se postam diante de um elefante. O rei pergunta a eles como aquele animal se parecia. O cego que abraça a perna disse que o animal era como uma coluna roliça. Outro pega na cauda e afirma que o bicho se assemelhava a uma vassoura. Já um terceiro apalpa a tromba e diz que o elefante era semelhante a uma serpente. Enfim, cada cego se manifesta de uma forma diferente.

O rei, então, sentencia aos ministros: “Viram? Cada um deles disse a sua verdade. E nenhuma delas responde corretamente a minha pergunta. Mas se juntarmos todas as respostas poderemos conhecer a grande verdade. Assim são vocês: cada um tem a sua parcela de verdade. Se souberem ouvir e compreender o outro e se observarem o mundo de diferentes ângulos, chegarão ao conhecimento e à sabedoria”.

A conclusão dessa fábula indiana imortalizada por Saxe pode ser aplicada diretamente nas discussões que envolvem o ex-ministro Moro nas redes sociais. Cada grupo está enxergando apenas uma pequena parte de sua atuação. Para fazermos justiça, precisamos julgar seu trabalho e sua atitude como um todo, lembrando de sua batalha contra a corrupção sem esquecer as pedaladas que deu em cima do Estado de Direito e da própria lei. Somente após pesar os prós e contras é que podemos chegar a uma conclusão justa. Tudo o que fizermos antes disso passar por esse pente fino será apenas torcer para um lado ou para outro.