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O outro lado do cancelamento

Agora, são os conservadores que partem para cancelar obras cujo conteúdo os incomodam

Liberdade de expressão é uma via de mão dupla. O cancelamento também (Hulu/Reprodução)
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Da Redação

Publicado em 7 de fevereiro de 2022 às 11h28.

Liberdade de expressão é uma via de mão dupla. O cancelamento também. Já faz algum tempo que determinadas patrulhas ideológicas querem cancelar estátuas, personagens históricos e livros que remetam a conceitos do passado que hoje causam repulsa. Ocorre que uma velha lei da física pode ser também aplicada ao comportamento humano: para cada ação, há uma reação. Agora, são os conservadores que partem para cancelar obras cujo conteúdo os incomodam.

Vários casos assim são mostrados em uma reportagem recente do New York Times. No Wyoming, por exemplo, um promotor público resolveu processar os funcionários de uma biblioteca que tinha exemplares de livros como “Sex is a Funny Word” (“Sexo é uma palavra engraçada”) e “This Book is Gay” (“Esse livro é gay”). Já no Tennessee, um Conselho Educacional vetou o uso de uma “graphic novel” chamada “Maus”, para ilustrar aulas sobre o Holocausto. Essa obra, que ganhou o prêmio Pulitzer, foi cancelada porque apresentava alguma nudez e palavras de baixo calão.
O grupo “No Left Turn in Education” (“Não vire à esquerda na educação”) tem uma lista de livros “usados para divulgar ideologias radicais e racistas aos estudantes”. Dois exemplos: um livro sobre história americana, do escritor Howard Zinn (expoente da esquerda americana), e o best-seller “The Handmaid’s Tale” (“O Conto da Aia”), de Margaret Atwood.

A obra de Atwood virou uma série de TV de grande audiência no mundo todo. O enredo conta uma história na qual os Estados Unidos são dominados por terroristas fundamentalistas cristãos (Filhos de Jacob). Essa organização rasga a Constituição e suprime os direitos das mulheres, que são inclusive proibidas de ler. Todas as leis passam a ser baseadas na Bíblia e o país é mergulhado em uma ditadura. Trata-se de um livro excepcional, que nos mostra o que pode acontecer quando se mistura religião e política de forma radical.

O cancelamento, de ambos os lados do espectro ideológico, é fruto de um cenário que transpira intolerância e causa danos à liberdade de expressão. Recentemente, algumas cidades americanas cederam à pressão de grupos politicamente corretos e retiraram monumentos sulistas de suas praças, com raízes na Guerra da Secessão. Na Inglaterra, a exibição de um filme antigo, como “Grease”, estrelado por John Travolta e Olivia Newton-John, provocou protestos junto à BBC. O motivo: o elenco tinha apenas atores brancos e o roteiro tinha (segundo os detratores) toques de homofobia. Ainda bem que a exibição não foi de outro filme famoso de Travolta, “Os Embalos de Sábado à Noite”, do qual todos lembram apenas das cenas de dança imortalizadas na discoteca 2001. Mas há passagens que mostram misoginia, racismo e até estupro. Os protestos, com certeza, seriam ainda maiores.

Os conservadores perceberam que a pressão junto aos meios de comunicação ou autoridades traz resultados – e passaram a jogar na mesma moeda. O que termos daqui para frente? Talvez um fenômeno novo – o do cancelamento pontual. Uma cidade, por exemplo, com mais conservadores poderia proibir de livros com sexo e ideias de esquerda. Em outras localidades, no entanto, com a maioria progressista, símbolos do conservadorismo seriam apagados.

No fundo, estamos fazendo algo perigoso: reescrevendo a história. O escritor Laurentino Gomes, em seu livro “Escravidão”, aborda o fenômeno de julgar o passado de uma forma instigante. “Anacronismo consiste no uso indevido de valores e referências de uma época para julgar ou avaliar personagens, acontecimentos ou fenômenos de outra. Ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de um período de tempo a que não pertencem. Seria anacronismo, por exemplo, dizer que Jesus era “de esquerda” ou que imperador romano Júlio César era “de direita”, uma vez que a noção de “esquerda” e “direita” na política só surgiu depois de 1789 nas assembleias da Revolução Francesa, quando os aliados do rei se sentavam à direita e os opositores à esquerda. Seria igualmente anacronismo colocar na cena de um filme ambientado no início do século XIX um telefone, invenção que Alexander Graham Bell só patentearia o seu invento em 1876 (com ajuda do imperador Pedro II, do Brasil, como mostrei no livro 1889)”.

O cancelamento indiscriminado pode nos levar a uma perda paulatina de liberdades individuais. E também pode ser um caminho para a autocensura. Um reflexo disso é a recente decisão de Chico Buarque de não mais cantar a música “Com Açúcar e Com Afeto”, pois a letra retrata uma mulher submissa que vive um relacionamento considerado abusivo nos dias de hoje.
Ao nos postarmos diante de algo que discordamos, nos forçamos a pensar. E deste processo sai a crítica. Isso só é possível com a liberdade de expressão. Do cancelamento não surge o contraditório – e, sem contraditório, não há inteligência.

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Liberdade de expressão é uma via de mão dupla. O cancelamento também. Já faz algum tempo que determinadas patrulhas ideológicas querem cancelar estátuas, personagens históricos e livros que remetam a conceitos do passado que hoje causam repulsa. Ocorre que uma velha lei da física pode ser também aplicada ao comportamento humano: para cada ação, há uma reação. Agora, são os conservadores que partem para cancelar obras cujo conteúdo os incomodam.

Vários casos assim são mostrados em uma reportagem recente do New York Times. No Wyoming, por exemplo, um promotor público resolveu processar os funcionários de uma biblioteca que tinha exemplares de livros como “Sex is a Funny Word” (“Sexo é uma palavra engraçada”) e “This Book is Gay” (“Esse livro é gay”). Já no Tennessee, um Conselho Educacional vetou o uso de uma “graphic novel” chamada “Maus”, para ilustrar aulas sobre o Holocausto. Essa obra, que ganhou o prêmio Pulitzer, foi cancelada porque apresentava alguma nudez e palavras de baixo calão.
O grupo “No Left Turn in Education” (“Não vire à esquerda na educação”) tem uma lista de livros “usados para divulgar ideologias radicais e racistas aos estudantes”. Dois exemplos: um livro sobre história americana, do escritor Howard Zinn (expoente da esquerda americana), e o best-seller “The Handmaid’s Tale” (“O Conto da Aia”), de Margaret Atwood.

A obra de Atwood virou uma série de TV de grande audiência no mundo todo. O enredo conta uma história na qual os Estados Unidos são dominados por terroristas fundamentalistas cristãos (Filhos de Jacob). Essa organização rasga a Constituição e suprime os direitos das mulheres, que são inclusive proibidas de ler. Todas as leis passam a ser baseadas na Bíblia e o país é mergulhado em uma ditadura. Trata-se de um livro excepcional, que nos mostra o que pode acontecer quando se mistura religião e política de forma radical.

O cancelamento, de ambos os lados do espectro ideológico, é fruto de um cenário que transpira intolerância e causa danos à liberdade de expressão. Recentemente, algumas cidades americanas cederam à pressão de grupos politicamente corretos e retiraram monumentos sulistas de suas praças, com raízes na Guerra da Secessão. Na Inglaterra, a exibição de um filme antigo, como “Grease”, estrelado por John Travolta e Olivia Newton-John, provocou protestos junto à BBC. O motivo: o elenco tinha apenas atores brancos e o roteiro tinha (segundo os detratores) toques de homofobia. Ainda bem que a exibição não foi de outro filme famoso de Travolta, “Os Embalos de Sábado à Noite”, do qual todos lembram apenas das cenas de dança imortalizadas na discoteca 2001. Mas há passagens que mostram misoginia, racismo e até estupro. Os protestos, com certeza, seriam ainda maiores.

Os conservadores perceberam que a pressão junto aos meios de comunicação ou autoridades traz resultados – e passaram a jogar na mesma moeda. O que termos daqui para frente? Talvez um fenômeno novo – o do cancelamento pontual. Uma cidade, por exemplo, com mais conservadores poderia proibir de livros com sexo e ideias de esquerda. Em outras localidades, no entanto, com a maioria progressista, símbolos do conservadorismo seriam apagados.

No fundo, estamos fazendo algo perigoso: reescrevendo a história. O escritor Laurentino Gomes, em seu livro “Escravidão”, aborda o fenômeno de julgar o passado de uma forma instigante. “Anacronismo consiste no uso indevido de valores e referências de uma época para julgar ou avaliar personagens, acontecimentos ou fenômenos de outra. Ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de um período de tempo a que não pertencem. Seria anacronismo, por exemplo, dizer que Jesus era “de esquerda” ou que imperador romano Júlio César era “de direita”, uma vez que a noção de “esquerda” e “direita” na política só surgiu depois de 1789 nas assembleias da Revolução Francesa, quando os aliados do rei se sentavam à direita e os opositores à esquerda. Seria igualmente anacronismo colocar na cena de um filme ambientado no início do século XIX um telefone, invenção que Alexander Graham Bell só patentearia o seu invento em 1876 (com ajuda do imperador Pedro II, do Brasil, como mostrei no livro 1889)”.

O cancelamento indiscriminado pode nos levar a uma perda paulatina de liberdades individuais. E também pode ser um caminho para a autocensura. Um reflexo disso é a recente decisão de Chico Buarque de não mais cantar a música “Com Açúcar e Com Afeto”, pois a letra retrata uma mulher submissa que vive um relacionamento considerado abusivo nos dias de hoje.
Ao nos postarmos diante de algo que discordamos, nos forçamos a pensar. E deste processo sai a crítica. Isso só é possível com a liberdade de expressão. Do cancelamento não surge o contraditório – e, sem contraditório, não há inteligência.

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