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Não bata no mensageiro

Nesta semana, recebi uma notícia amarga vinda de um amigo. Fiquei chateado, mas me abstive de qualquer sentimento ruim em relação ao portador das más novas

Paul McCartney: episódio nesta semana me fez lembrar de situação vivida pelos Beatles (Patrick Kovarik/AFP/AFP)
Paul McCartney: episódio nesta semana me fez lembrar de situação vivida pelos Beatles (Patrick Kovarik/AFP/AFP)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 24 de julho de 2020 às, 08h42.

Escrever, muitas vezes, é uma livre associação de ideias, especialmente para quem faz isso várias vezes ao dia. Esta coluna é um exemplo vivo disso. Nesta semana, recebi uma notícia amarga vinda de um amigo. Fiquei chateado com a mensagem, mas me abstive de qualquer sentimento ruim em relação ao portador das más novas. Esse é um problema que geralmente enfrentamos quando ouvimos algo que nos desagrada. Nossa primeira reação é querer torcer o pescoço do mensageiro.

Este episódio pessoal me fez lembrar uma passagem do livro “Many Years From Now”, escrito por Barry Miles e considerado a biografia autorizada de Paul McCartney. A narrativa de Miles é muito fluida e usa um recurso bastante interessante. Volta e meia, a versão de Paul é confrontada com o depoimento de outra pessoa que testemunhou o mesmo fato. O resultado é interessantíssimo, pois estes personagens notaram detalhes despercebidos pelo ex-beatle ou têm uma lembrança totalmente diferente da do biografado.

O fato que veio à memória ocorreu no início de 1970, quando os Beatles já tinham se separado de fato, mas ainda não tinham anunciado o rompimento ao público. Havia um disco ainda a ser lançado (“Let it Be”) e, assim, os quatro integrantes da banda decidiram manter a separação em segredo para não prejudicar suas vendas. Paralelamente, Paul gravou um álbum solo e marcou a data de lançamento. Só que seus colegas (eles eram donos da gravadora, a Apple) decidiram que o disco “McCartney” seria adiado. Sabendo que Paul não gostaria nada da notícia, mandaram Ringo Starr, o beatle mais boa gente, para dar as más notícias.

Na página 690, está o depoimento do autor de “Yesterday” ao jornal Evening Standard: “Ringo veio me trazer uma carta dos outros e eu o chamei de tudo o quanto era nome. Não quero brigar com Ringo. Gosto dele, o acho fantástico. Só que estamos todos falando de paz e amor, mas na verdade não nos sentimos nem um pouco pacíficos. A culpa não é de ninguém. Nós é que fomos bobos de entrar nessa situação”. Paul McCartney pediu desculpas a Ringo e os dois são amigos até hoje. Mas sempre carregou consigo o remorso de ter ralhado com alguém que vinha apenas trazer notícias desagradáveis.

No início do texto, falei em livre associação de ideias. E a segunda parte dele vem justamente por conta disso. Enquanto pensava no episódio entre Paul e Ringo (não consigo chamar os Beatles pelo sobrenome – eles me acompanharam a vida inteira e, por isso, tenho a sensação de que todos os integrantes da banda são meus amigos de longa data), tive um insight sobre a dinâmica dessa banda, algo que tem paralelo no mundo dos negócios.

John Lennon fundou os Beatles com o ímpeto de empreendedor. Com o tempo, no entanto, foi dando mostras de cansaço e deu seu lugar de chefe ao parceiro de composições, conhecido por um estilo mais conservador e compositor de baladas açucaradas.

Apesar deste perfil, Paul criou alguns dos momentos mais vanguardistas dos Beatles. Duvida? A ideia conceitual do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e o arranjo dadaísta de orquestra na canção “A Day in the Life”? Dele. A música mais barulhenta da banda – Helter Skelter? Sua composição. O medley de canções inacabadas no lado B do disco Abbey Road, a marca registrada do álbum? Também ideia dele.

Na prática, Paul virou o CEO dos Beatles. O cara chato que insiste nos ensaios e estica as gravações para conseguir a faixa perfeita. Que cobra e distribui broncas. Mas que dá resultados.

A ascensão de Paul e o retraimento de John descortina como muitas pessoas reagem à competição e aos tempos difíceis.

Uns, como o vocalista de “Black Bird”, florescem na adversidade, em um delírio criativo sem fim. Já outros têm a reação daquele que escreveu “I’m Only Sleeping” (baseada em suas sonecas de tarde na mansão em Weybridge, Surrey) – caem na apatia e diminuem drasticamente sua produtividade.

Na pandemia, temos inúmeras pessoas replicando o comportamento de John Lennon ou de Paul McCartney. E você, em qual perfil você se encaixa?