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Bolsonaro conseguirá não renovar a concessão da Globo?

Bolsonaro sabe que não pode simplesmente tirar a emissora da tomada e que tem chances pequenas de vitória. Mas quer armar uma confusão assim mesmo

O presidente Jair Bolsonaro (Bloomberg / Colaborador/Getty Images)
O presidente Jair Bolsonaro (Bloomberg / Colaborador/Getty Images)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 2 de junho de 2022 às, 09h36.

Aluizio Falcão Filho

Faltam pouco mais de cinco meses para que a concessão pública da TV Globo chegue ao final. Normalmente, a renovação seria um processo automático e simples. Mas o presidente Jair Bolsonaro, segundo comentários que circularam essa semana, vai encaminhar ao Congresso um relatório no qual recomenda a interrupção do contrato. Isso, no entanto, não vai tirar a Globo no ar. Terá início um processo jurídico no qual o Parlamento será acionado e, eventualmente, o Poder Jurídico.

Bolsonaro sabe que não pode simplesmente tirar a emissora da tomada e que tem chances pequenas de vitória. Mas quer armar uma confusão assim mesmo. Há vários políticos que são retransmissores de televisão em seus estados de origem – alguns deles da própria emissora da família Marinho. Portanto, mesmo com a proximidade do Centrão com o governo, as chances de sucesso nesta iniciativa de não renovar a concessão pública da Globo são muito pequenas.

Na história recente do país, tivemos três casos de intervenção federal em emissoras. TV Manchete e TV Tupi (a primeira a entrar no ar no país, em 1950), por exemplo, tiveram seus transmissores lacrados por problemas financeiros, que levaram os canais à bancarrota. No caso da Excelsior, desligada em 1970, a adversidade também foi de caixa, mas teve origem política.

A emissora fazia parte do mesmo grupo que a companhia aérea Panair, que foi fechada pelo governo militar (o dono da empresa, Mario Wallace Simonsen, tinha apoiado publicamente o presidente deposto em 1964, João Goulart – e essa atitude foi lembrada constantemente pela concorrente Varig, que tinha interesse nas linhas operadas pela Panair). Apesar disso, a Excelsior investiu em sua programação, contratando José Bonifácio de Oliveira, o Boni, e colocando no ar o primeiro programa do humorista Renato Aragão, chamado de “Didi e Dedé”.

Com o AI-5, no entanto, a emissora sofreu com a Censura. Como protesto, começou a veicular programas jornalísticos com tarjas nas quais estava escrito “censurado” nos trechos que tinham sido vetados pelas autoridades. Com isso, o governo deu início a uma perseguição através da Receita Federal, impingindo multas impagáveis. Foi dado um prazo de 15 dias para que a Excelsior pagasse os impostos cobrados e, em 30 de setembro de 1970, foi tirada do ar (lembro muito bem deste dia: a Excelsior passava um desenho animado japonês que eu adorava, chamado “Oitavo Homem”. Liguei o aparelho para assisti-lo e o canal não existia mais; no dia seguinte, quis ver outro desenho, chamado “Marine Boy”. Também não consegui. Só depois, adolescente, é que soube o que tinha acontecido).

A pinimba com fundo político entre o governo e a Globo, como se vê, tem antecedentes históricos. Bolsonaro é atacado com frequência pela emissora e pelos demais veículos do grupo. Mas, até aí, José Sarney, Fernando Collor, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff também foram criticados pela TV dos Marinho – e nunca cogitaram uma ação tão radical como não renovar a concessão de sinal.

Nesta caso, como em vários outros, o presidente parece estar jogando para a torcida. Seus apoiadores mais fiéis não só detestam o jornalismo global como também têm reservas quanto ao conteúdo das novelas. Mas, neste ponto, Bolsonaro tem algo em comum com Lula – o petista, igualmente, não tolera a Globo e credita à emissora todo o processo que levou ao impeachment de Dilma. Não é à toa, portanto, que muitos militantes petistas chamam a emissora de “golpista”.

A decisão de Bolsonaro, se realmente for implementada, vai chegar em uma época na qual o número total de telespectadores de TV aberta vem caindo significativamente. Embora em números absolutos, a audiência esteja, em alguns acasos até maior (em função do crescimento da população), o percentual em relação ao número total do público vem diminuindo.

Sem nenhum valor científico, resolvi fazer um experimento caseiro sobre esse assunto. Perguntei ontem à minha filha de 14 anos se ela assistia algum canal de TV aberta. A reposta foi negativa. Quando foi a última vez que ela tinha ligado o aparelho de TV (que também transmite os canais pagos)? Na final do Big Brother Brasil no ano passado (neste ano, ela acompanhou o programa pela Globoplay, no computador e no celular). Seus colegas assistem à TV aberta? Não. Hoje, ela e sua turma consomem apenas filmes e séries pelos serviços de streaming (a coqueluche atual é a nova temporada de “Stranger Things”, que resgatou uma música de Kate Bush gravada em 1985 – “Running Up that Hill”). Notícias? Apenas pelo celular.

Se a coisa continuar desse jeito, a audiência da Globo e de toda a TV aberta deve cair ainda mais. Quando o sistema de 5G for totalmente disseminado no Brasil, é de se esperar que o processo de inclusão digital vá se expandir ainda mais, levando o público para os smartphones, sem a necessidade de um aparelho de televisão. Ou seja, a importância relativa de um canal aberto de televisão, que já foi enorme, hoje é questionável. Assim, essa iniciativa do governo, além de não ter efeitos práticos legais, pode também ser inútil do ponto de vista de formação de opinião.

O que seria de Bolsonaro sem ter a Globo para usá-la como o epicentro das coisas ruins que assolam o Brasil? O filósofo irlandês Edmund Burke, que viveu no século 18, tem uma frase que poderia servir de reflexão para o presidente e seus apoiadores: “Aquele que luta contra nós fortalece nossos nervos e aguça nossa habilidade. O antagonista, antes de mais nada, é alguém que nos ajuda”.