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Atestado falso de comorbidade: é preciso punir os espertalhões

Furar qualquer fila é um ato criticável. Mas a coisa fica mais grave quando estamos falando de falsificar papéis para se vacinar antes do prazo

Profissional de saúde aplica vacina contra covid-19. (Ricardo Moraes/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 25 de maio de 2021 às 08h48.

Aluizio Falcão Filho

Moro a três quadras de um posto de saúde. E, no caminho para o trabalho ou para deixar minha filha na escola, sempre passo por lá. Desde que teve início o processo de vacinação , vejo movimentação no local e, eventualmente, filas. Entre 20 e 21 de maio, porém, me chamou atenção a quantidade de pessoas esperando a vez para ser vacinadas desde às 7:00, um fenômeno que pôde ser observado durante as manhãs e as tardes desses dias. Essa procura enorme se deu justamente na data reservada às pessoas com mais de 45 anos e sofrendo de comorbidades. Ao estranhar a fila imensa, um pensamento maldoso, confesso, cruzou meus pensamentos. “Será que tem tanta gente assim com enfermidades pré-existentes?”, perguntei a mim mesmo.

Resolvi relevar esse questionamento e apostar na correção e na dignidade dos seres humanos. Mas, durante o final de semana, li algumas reportagens que corroboraram minhas primeiras suspeitas. Numa delas, havia o depoimento de médicos que revelavam ter sido abordados por pessoas que queriam atestados médicos falsos. Em um desses casos, um sujeito pedia cinco documentos, um para cada membro da família.

Outra reportagem mostra que pelo menos 100 médicos devem ser investigados pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo a pedido do governo estadual. O sistema Vacivida, que consolida os dados da vacinação, exige a inclusão do registro no CRM dos profissionais de medicina que atestaram as enfermidades dos imunizados. Dessa forma, chegou-se a uma quantidade anormal de atestados emitidos por esse grupo de médicos e o governo passou a suspeitar de um esquema fraudulento.

Entende-se o desespero de algumas pessoas em receber a imunização rapidamente. O coronavírus tem reações que variam de indivíduo para indivíduo e suas novas variantes parecem ter um índice de contágio muito maior. É justamente por isso, inclusive, que há uma romaria de brasileiros em direção ao México para fazer quarentena e, então, seguir viagem aos Estados Unidos para ser vacinados. Esse turismo da vacina, porém, é absolutamente legal. Custa caro e pode ser questionado moralmente por alguns, mas está rigorosamente dentro da lei.

Utilizar um atestado falso, porém, é fraude e essa prática pode ser enquadrada no artigo 291 do Código Penal, que prevê os crimes de falsidade ideológica: “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.” A pena para este delito (raramente cumprida pela Justiça, diga-se)? De dois a seis anos de prisão.

Como se pode ver na investigação inicial pedida pelo governo de São Paulo, há a suspeita de que um número considerável de cidadãos resolveu furar a fila de forma fraudulenta. O que se pode dizer de alguém que comete essa delinquência?

Furar qualquer fila é um ato criticável. Mas a coisa fica mais grave quando estamos falando de falsificar papéis para se vacinar antes do prazo estabelecido pelas autoridades. Como acontece na economia quando a lei é desrespeitada, os detratores devem ser punidos. O que diz o economista Milton Friedman, um dos gurus do ministro Paulo Guedes, sobre quebrar as regras? “Há apenas uma responsabilidade social no mundo dos negócios – aumentar os lucros, desde que os empresários se mantenham dentro das regras do jogo, se comprometendo com a livre concorrência sem cometer dolo ou fraude”, escreveu ele.

Ou seja, para Friedman, o lucro é o objetivo de todos os homens de negócios – desde que as regras sejam respeitadas. Furar a fila da vacina é o oposto do respeito à lei: é desrespeitar as autoridades e criar falsos privilégios. Provavelmente, entre os detratores, há os moralistas de ocasião, aqueles que se indignaram com as roubalheiras denunciadas pela Operação Lava-Jato, mas cometem delitos em seu cotidiano, como falsificar atestados, subornar guardas de trânsito e estacionar em vagas destinadas a deficientes sem ter nenhum problema físico.

Por que temos esse tipo de comportamento no Brasil? Lamentavelmente, nossa lei é complicada e sensível a interpretações que dificultam a punição dos mais abastados, que podem pagar bons advogados. Isso até pode ocorrer nos demais países. Porém, a Justiça na Europa e nos Estados Unidos costuma ser mais democrática. Se sentenças severas são aplicadas, como ocorre no exterior, o comportamento dos cidadãos naturalmente melhora. No Brasil, porém, a sensação de impunidade eleva as doses de coragem de certos indivíduos que preferem correr um risco pequeno e obter vantagens – no caso, uma vacina aplicada com maior rapidez.

O que pode ser feito para punir essas pessoas, que podem arrastar um processo destes por anos a fio?

Um amigo advogado, que prefere ficar no anonimato, tem uma solução para coibir a malandragem: fazer um cruzamento entre os dados das secretarias de saúde e a base de clientes dos planos de saúde. Com isso, muitos dos que apresentaram falsas comorbidades terão de pagar mais por suas coberturas na renovação anual de seus prêmios. Como diria o ex-ministro Delfim Netto, essa medida mexeria com a parte mais sensível do corpo humano – o bolso.

Já que a Justiça comum não funciona, que um castigo econômico seja providenciado aos espertalhões. Pode ser pouco, é verdade. Mas é melhor que nada.

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Aluizio Falcão Filho

Moro a três quadras de um posto de saúde. E, no caminho para o trabalho ou para deixar minha filha na escola, sempre passo por lá. Desde que teve início o processo de vacinação , vejo movimentação no local e, eventualmente, filas. Entre 20 e 21 de maio, porém, me chamou atenção a quantidade de pessoas esperando a vez para ser vacinadas desde às 7:00, um fenômeno que pôde ser observado durante as manhãs e as tardes desses dias. Essa procura enorme se deu justamente na data reservada às pessoas com mais de 45 anos e sofrendo de comorbidades. Ao estranhar a fila imensa, um pensamento maldoso, confesso, cruzou meus pensamentos. “Será que tem tanta gente assim com enfermidades pré-existentes?”, perguntei a mim mesmo.

Resolvi relevar esse questionamento e apostar na correção e na dignidade dos seres humanos. Mas, durante o final de semana, li algumas reportagens que corroboraram minhas primeiras suspeitas. Numa delas, havia o depoimento de médicos que revelavam ter sido abordados por pessoas que queriam atestados médicos falsos. Em um desses casos, um sujeito pedia cinco documentos, um para cada membro da família.

Outra reportagem mostra que pelo menos 100 médicos devem ser investigados pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo a pedido do governo estadual. O sistema Vacivida, que consolida os dados da vacinação, exige a inclusão do registro no CRM dos profissionais de medicina que atestaram as enfermidades dos imunizados. Dessa forma, chegou-se a uma quantidade anormal de atestados emitidos por esse grupo de médicos e o governo passou a suspeitar de um esquema fraudulento.

Entende-se o desespero de algumas pessoas em receber a imunização rapidamente. O coronavírus tem reações que variam de indivíduo para indivíduo e suas novas variantes parecem ter um índice de contágio muito maior. É justamente por isso, inclusive, que há uma romaria de brasileiros em direção ao México para fazer quarentena e, então, seguir viagem aos Estados Unidos para ser vacinados. Esse turismo da vacina, porém, é absolutamente legal. Custa caro e pode ser questionado moralmente por alguns, mas está rigorosamente dentro da lei.

Utilizar um atestado falso, porém, é fraude e essa prática pode ser enquadrada no artigo 291 do Código Penal, que prevê os crimes de falsidade ideológica: “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.” A pena para este delito (raramente cumprida pela Justiça, diga-se)? De dois a seis anos de prisão.

Como se pode ver na investigação inicial pedida pelo governo de São Paulo, há a suspeita de que um número considerável de cidadãos resolveu furar a fila de forma fraudulenta. O que se pode dizer de alguém que comete essa delinquência?

Furar qualquer fila é um ato criticável. Mas a coisa fica mais grave quando estamos falando de falsificar papéis para se vacinar antes do prazo estabelecido pelas autoridades. Como acontece na economia quando a lei é desrespeitada, os detratores devem ser punidos. O que diz o economista Milton Friedman, um dos gurus do ministro Paulo Guedes, sobre quebrar as regras? “Há apenas uma responsabilidade social no mundo dos negócios – aumentar os lucros, desde que os empresários se mantenham dentro das regras do jogo, se comprometendo com a livre concorrência sem cometer dolo ou fraude”, escreveu ele.

Ou seja, para Friedman, o lucro é o objetivo de todos os homens de negócios – desde que as regras sejam respeitadas. Furar a fila da vacina é o oposto do respeito à lei: é desrespeitar as autoridades e criar falsos privilégios. Provavelmente, entre os detratores, há os moralistas de ocasião, aqueles que se indignaram com as roubalheiras denunciadas pela Operação Lava-Jato, mas cometem delitos em seu cotidiano, como falsificar atestados, subornar guardas de trânsito e estacionar em vagas destinadas a deficientes sem ter nenhum problema físico.

Por que temos esse tipo de comportamento no Brasil? Lamentavelmente, nossa lei é complicada e sensível a interpretações que dificultam a punição dos mais abastados, que podem pagar bons advogados. Isso até pode ocorrer nos demais países. Porém, a Justiça na Europa e nos Estados Unidos costuma ser mais democrática. Se sentenças severas são aplicadas, como ocorre no exterior, o comportamento dos cidadãos naturalmente melhora. No Brasil, porém, a sensação de impunidade eleva as doses de coragem de certos indivíduos que preferem correr um risco pequeno e obter vantagens – no caso, uma vacina aplicada com maior rapidez.

O que pode ser feito para punir essas pessoas, que podem arrastar um processo destes por anos a fio?

Um amigo advogado, que prefere ficar no anonimato, tem uma solução para coibir a malandragem: fazer um cruzamento entre os dados das secretarias de saúde e a base de clientes dos planos de saúde. Com isso, muitos dos que apresentaram falsas comorbidades terão de pagar mais por suas coberturas na renovação anual de seus prêmios. Como diria o ex-ministro Delfim Netto, essa medida mexeria com a parte mais sensível do corpo humano – o bolso.

Já que a Justiça comum não funciona, que um castigo econômico seja providenciado aos espertalhões. Pode ser pouco, é verdade. Mas é melhor que nada.

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