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As aglomerações são como fake news: maléficas e inevitáveis

Boa parte das pessoas prefere ignorar efeitos da pandemia e joga uma espécie de roleta russa com sua saúde e a segurança sanitária dos outros

Aglomeração no Rio de Janeiro  (Pilar Olivares/Reuters)
Aglomeração no Rio de Janeiro (Pilar Olivares/Reuters)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 4 de janeiro de 2021 às, 10h53.

Última atualização em 4 de janeiro de 2021 às, 11h28.

O Papa Francisco estrilou. O atual comissário de Economia da União Europeia, Paolo Gentiloni, também. O governador de São Paulo, João Doria, idem. Mas, pelo jeito, não adianta vociferar, protestar ou gritar. As aglomerações ressurgiram no final de ano passado e devem continuar.

A consequência dessas multidões será nefasta, pois seus efeitos são óbvios: maior contaminação e aceleração no número de mortes. Teremos um novo crescimento de infecções em cerca de dez dias e o sistema de saúde, que está sobrecarregado, será posto à prova. Conseguiremos escapar do colapso total, como o que aconteceu no início da pandemia na Itália? Logo saberemos.

Do ponto de vista racional, a lógica que pede o fim das aglomerações é inquestionável. Uma única pessoa pode infectar mais cem indivíduos em locais apinhados de gente. Cada uma dessas, mais tarde, tem o potencial de contaminar mais seis seres humanos em dois dias. O efeito desta bola de neve é um enorme contingente sofrendo os efeitos da Covid-19, além de um número considerável de mortes. Mas, lembremos, o maior desafio de toda a pandemia é não provocar uma sobrecarga no sistema de saúde. Este eventual colapso pode causar outros problemas sanitários e sociais.

Por que as pessoas resistem ao chamado da razão e se aglomeram? A resposta é simples: ninguém aguenta mais ficar em casa ou refrear seus impulsos de encontrar os amigos. Mas, e os efeitos da pandemia, que continuam? Boa parte das pessoas prefere ignorá-los e acaba jogando uma espécie de roleta russa com sua saúde e a segurança sanitária dos outros.

A sociedade chegou a um nível de exaustão semelhante ao visto em algumas cidades americanas durante o surto de Influenza. Em um determinado momento da crise sanitária do século passado, por exemplo, muitos habitantes de San Francisco simplesmente se recusaram a utilizar máscara ou a deixar de se reunir. O resultado foi desastroso: a cidade foi uma das mais atingidas pela pandemia, com 45 000 residentes infectados e 3 000 mortos. A população total do município naquele momento? Cerca de 500 000 habitantes.

No fundo, estamos lidando com um problema semelhante ao das fake news: a insistência em desobedecer ao distanciamento social é maléfico e, apesar de todos reconhecerem ser algo errado, muitos praticam o erro de forma consciente.

O fato de termos experimentado o lockdown no início do ano nos torna resistentes à ideia de retroceder e voltar à vigília caseira. Muitos de nós são levados a um estado de rebeldia e preferem correr riscos, especialmente agora que temos uma evolução nos protocolos de atendimento.

Enquanto estamos arriscando o próprio pescoço, porém, este dilema moral pode ser encarado como uma questão de foro íntimo. Mas ocorre que o vírus é facilmente transmitido e os cidadãos não estão apenas pondo em risco a própria pele – mas também a vida de pessoas que nem conhecem.

Como as fake news, este comportamento parece não ter solução. A cada proibição e lockdown, como houve em San Francisco no século passado, haverá uma desobediência. Como resolver este desafio?

A única solução visível é acelerar a vacinação em massa, utilizando a rede pública, e criando uma imunização que vai permitir a sociedade deixar a pandemia para trás. Mas as autoridades sanitárias devem também permitir que o sistema privado entre neste esforço – e que empresas e classes mais abastadas possam adquirir suas vacinas, acelerando o processo e ajudando a girar a roda da economia. Ao concentrarmos toda a operação junto ao sistema público, estaremos correndo o risco de enfrentar gargalos inesperados – como a notícia recente de que o Ministério da Saúde havia comprado menos de 3 % das seringas necessárias para vacinar toda a população brasileira (e, na sequência, proibir a exportação desses itens, numa espécie de confisco da produção nacional desses itens).

Os agentes públicos deveriam apressar o processo ainda em janeiro e o Ministério poderia colaborar ainda mais, aceitando que clínicas e hospitais particulares entrem nessa força-tarefa. Estamos vivendo um momento em que toda a pessoa imunizada conta. E, nessa equação, pouco importa se a vacina foi aplicada de graça, pelo governo, ou em troca de um valor pela rede privada. Não podemos nos esquecer dos objetivos principais desse esforço conjunto: preservar o sistema de saúde e salvar vidas que podem ser perdidas com facilidade para um vírus mortal e com grande capacidade de transmissão.