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A saída de Novaes do BB e a cultura do cancelamento

Nos dias de hoje, é possível se ofender aleatoriamente com tudo, desde temas sérios aos mais frívolos

Presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes (Amanda Perobelli/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 26 de julho de 2020 às 16h34.

Última atualização em 26 de julho de 2020 às 17h20.

Cancelamento. A palavra está na capa da revista Veja desta semana e na ponta da língua dos brasileiros.

É um fenômeno observado quando alguém se manifesta (inadvertidamente ou não) contra os ideais politicamente corretos e é perseguido. Ou então um indivíduo que supostamente trai os valores da direita mais radical é acossado por robôs, num processo claro de destruição de reputações.

O objetivo, nos dois casos, é cancelar a pessoa. Mas, cancelar do quê? De tudo, basicamente. O ponto de partida do processo é a rede. Neste palco, se promovem verdadeiros fuzilamentos em praça pública.

O objetivo final, porém, não é apenas expulsar do mundo digital os politicamente incorretos ou os direitistas traidores da causa conservadora. A ideia é varrê-los do mapa, tirá-los de seus negócios e colocá-los no mais profundo ostracismo.

Não se trata exatamente de um fenômeno novo. Os mais velhos vão se lembrar das patrulhas ideológicas, que entre os anos 1960 e 1980 despejavam suas baterias contra artistas que não tivessem obras engajadas ou fossem identificados com a direita durante o governo militar. Quer falar de amor em uma canção? Tudo bem, desde que se coloque no meio da letra uma metáfora contra a ditadura. Filme sem mensagem política ou crítica social? Nem pensar. Ler poesia? Só fosse de Maiakovski.

Com o passar dos anos, as tais patrulhas foram desaparecendo e as redes sociais trouxeram herdeiros que copiam o radicalismo, a insensibilidade e a intolerância desses pioneiros. Só que essa militância conta com uma arma secreta – os robôs que têm capacidade geométrica de disseminação de impropérios e apupos.

Neste cenário, as pessoas vão ficando cada vez mais receosas de manifestar suas opiniões sobre qualquer assunto. Nos dias de hoje, é possível se ofender aleatoriamente com tudo, desde temas sérios aos mais frívolos. O medo da perseguição, assim, acaba criando dois outros fenômenos.

O primeiro é o da autocensura. Cidadãos e figuras públicas vão perdendo sua espontaneidade e passam a dar declarações protocolares, todas na base do “não me comprometa”. Opiniões mais contundentes, neste caso, podem minguar ou mesmo desaparecer por completo. Os integrantes da crítica intempestiva, no entanto, vão continuar a fustigar, cutucar e vociferar contra aqueles que pensam diferente.

O segundo efeito é o do auto cancelamento. Entre aqueles que têm consistência e ideias firmes pontificam os que preferem se afastar da ribalta antes que a turba ignara comece a atacá-los. Esse pode ter sido o caso de Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil, que apresentou sua carta de demissão há dois dias.

Em entrevista ontem à CNN, ele disse que pediu demissão por “não se adaptar à cultura de privilégios, compadrio e corrupção de Brasília”. Não revelou nenhum exemplo do que poderia ter constrangido seus valores éticos, mas deixou bem claro que lidar o toma-lá-dá-cá político não é sua principal vocação.

Depois, Novaes até relativizou sua saída, dizendo que os tempos de PIX e Open Banking precisam de um presidente que esteja mais próximo da cultura digital, o que não seria o seu caso.

O fato é que tínhamos um liberal à testa do Banco do Brasil, alguém que defendia publicamente a privatização do banco estatal e, por isso, havia sido criticado sem dó nem piedade. Apertar o botão do auto cancelamento, assim, seria a decisão mais sensata a tomar, até para preservar a família de uma corrosão inevitável em sua imagem pública.

Na semana passada, nesta coluna, já havia citado um exemplo de auto cancelamento, o da colunista do New York Times, Bari Weiss. Conservadora e defensora de pontos de vista que passavam longe da agenda politicamente correta, ela pediu demissão e publicou sua carta de desligamento, endereçada ao Publisher do jornal, A. G. Sulzberger. Vale a pena repetir um trecho dessa certa: “Minhas próprias incursões no “pensamento errado” me transformaram em alvo de constante bullying por parte dos meus colegas que discordam de minhas visões. Eles me chamaram de nazista e de racista”.

Reações como a perseguição a Weiss me lembram o enredo do livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Esta obra relata um futuro no qual os livros são proibidos e opiniões individuais devem ser banidas (o título faz alusão à temperatura na qual o papel das obras literárias é queimado). Há uma passagem que diz o seguinte: “Negros não gostam de ‘Sambô, o Negrinho’. Queimem o livro. Brancos não se sentem bem a respeito de ‘A cabana do Pai Tomás’. Queimem. Alguém escreveu um livro sobre tabaco e câncer nos pulmões. Os fumantes estão reclamando? Queimem esse livro também”.

As palavras de Bradbury lembram em muito a cultura do cancelamento. Se deixarmos esse movimento se alastrar – por mais nobres que sejam alguns dos motivos que impelem a militância a cancelar alguém – o debate e a troca de ideias serão feridos de morte. Todos pensarão duas vezes antes de dizer o que pensam e, em muitos casos, uma verdadeira opinião ficará submersa. Medo da reação é algo também registrado nas páginas de outro livro de ficção científica: 1984, de George Orwell. Neste livro, a sociedade vive sob um regime totalitário que persegue aqueles que têm opinião própria. É parecido com o que vivemos hoje, com a diferença que a perseguição se dá no âmbito privado, sem que o governo se meta nisso. Pelo menos do mundo do cancelamento, direita e esquerda se unem através da livre iniciativa para atacar seus inimigos. Os defensores do livre debate de ideias precisam dar o troco na mesma moeda: reprimir esse tipo de sandice sem enfiar os poderes constituídos nessa batalha.

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Cancelamento. A palavra está na capa da revista Veja desta semana e na ponta da língua dos brasileiros.

É um fenômeno observado quando alguém se manifesta (inadvertidamente ou não) contra os ideais politicamente corretos e é perseguido. Ou então um indivíduo que supostamente trai os valores da direita mais radical é acossado por robôs, num processo claro de destruição de reputações.

O objetivo, nos dois casos, é cancelar a pessoa. Mas, cancelar do quê? De tudo, basicamente. O ponto de partida do processo é a rede. Neste palco, se promovem verdadeiros fuzilamentos em praça pública.

O objetivo final, porém, não é apenas expulsar do mundo digital os politicamente incorretos ou os direitistas traidores da causa conservadora. A ideia é varrê-los do mapa, tirá-los de seus negócios e colocá-los no mais profundo ostracismo.

Não se trata exatamente de um fenômeno novo. Os mais velhos vão se lembrar das patrulhas ideológicas, que entre os anos 1960 e 1980 despejavam suas baterias contra artistas que não tivessem obras engajadas ou fossem identificados com a direita durante o governo militar. Quer falar de amor em uma canção? Tudo bem, desde que se coloque no meio da letra uma metáfora contra a ditadura. Filme sem mensagem política ou crítica social? Nem pensar. Ler poesia? Só fosse de Maiakovski.

Com o passar dos anos, as tais patrulhas foram desaparecendo e as redes sociais trouxeram herdeiros que copiam o radicalismo, a insensibilidade e a intolerância desses pioneiros. Só que essa militância conta com uma arma secreta – os robôs que têm capacidade geométrica de disseminação de impropérios e apupos.

Neste cenário, as pessoas vão ficando cada vez mais receosas de manifestar suas opiniões sobre qualquer assunto. Nos dias de hoje, é possível se ofender aleatoriamente com tudo, desde temas sérios aos mais frívolos. O medo da perseguição, assim, acaba criando dois outros fenômenos.

O primeiro é o da autocensura. Cidadãos e figuras públicas vão perdendo sua espontaneidade e passam a dar declarações protocolares, todas na base do “não me comprometa”. Opiniões mais contundentes, neste caso, podem minguar ou mesmo desaparecer por completo. Os integrantes da crítica intempestiva, no entanto, vão continuar a fustigar, cutucar e vociferar contra aqueles que pensam diferente.

O segundo efeito é o do auto cancelamento. Entre aqueles que têm consistência e ideias firmes pontificam os que preferem se afastar da ribalta antes que a turba ignara comece a atacá-los. Esse pode ter sido o caso de Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil, que apresentou sua carta de demissão há dois dias.

Em entrevista ontem à CNN, ele disse que pediu demissão por “não se adaptar à cultura de privilégios, compadrio e corrupção de Brasília”. Não revelou nenhum exemplo do que poderia ter constrangido seus valores éticos, mas deixou bem claro que lidar o toma-lá-dá-cá político não é sua principal vocação.

Depois, Novaes até relativizou sua saída, dizendo que os tempos de PIX e Open Banking precisam de um presidente que esteja mais próximo da cultura digital, o que não seria o seu caso.

O fato é que tínhamos um liberal à testa do Banco do Brasil, alguém que defendia publicamente a privatização do banco estatal e, por isso, havia sido criticado sem dó nem piedade. Apertar o botão do auto cancelamento, assim, seria a decisão mais sensata a tomar, até para preservar a família de uma corrosão inevitável em sua imagem pública.

Na semana passada, nesta coluna, já havia citado um exemplo de auto cancelamento, o da colunista do New York Times, Bari Weiss. Conservadora e defensora de pontos de vista que passavam longe da agenda politicamente correta, ela pediu demissão e publicou sua carta de desligamento, endereçada ao Publisher do jornal, A. G. Sulzberger. Vale a pena repetir um trecho dessa certa: “Minhas próprias incursões no “pensamento errado” me transformaram em alvo de constante bullying por parte dos meus colegas que discordam de minhas visões. Eles me chamaram de nazista e de racista”.

Reações como a perseguição a Weiss me lembram o enredo do livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Esta obra relata um futuro no qual os livros são proibidos e opiniões individuais devem ser banidas (o título faz alusão à temperatura na qual o papel das obras literárias é queimado). Há uma passagem que diz o seguinte: “Negros não gostam de ‘Sambô, o Negrinho’. Queimem o livro. Brancos não se sentem bem a respeito de ‘A cabana do Pai Tomás’. Queimem. Alguém escreveu um livro sobre tabaco e câncer nos pulmões. Os fumantes estão reclamando? Queimem esse livro também”.

As palavras de Bradbury lembram em muito a cultura do cancelamento. Se deixarmos esse movimento se alastrar – por mais nobres que sejam alguns dos motivos que impelem a militância a cancelar alguém – o debate e a troca de ideias serão feridos de morte. Todos pensarão duas vezes antes de dizer o que pensam e, em muitos casos, uma verdadeira opinião ficará submersa. Medo da reação é algo também registrado nas páginas de outro livro de ficção científica: 1984, de George Orwell. Neste livro, a sociedade vive sob um regime totalitário que persegue aqueles que têm opinião própria. É parecido com o que vivemos hoje, com a diferença que a perseguição se dá no âmbito privado, sem que o governo se meta nisso. Pelo menos do mundo do cancelamento, direita e esquerda se unem através da livre iniciativa para atacar seus inimigos. Os defensores do livre debate de ideias precisam dar o troco na mesma moeda: reprimir esse tipo de sandice sem enfiar os poderes constituídos nessa batalha.

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