A Rita Lee que conheci
Curiosamente, Rita não tinha muito interesse em escrever sobre sua própria trajetória
Publicado em 10 de maio de 2023 às, 13h28.
Conheci Rita Lee em 2010.
Tínhamos um amigo em comum que me falou de um projeto que ela acalentava com seu filho, de escrever um livro que mostraria como seria a vida se seres humanos estivessem no lugar de animais, seja como alimentos ou fornecendo pele para vestimentas. Disse que conhecia algumas pessoas na Editora Globo e que poderia apresentá-la a quem mandava por lá – no caso, Frederic Kachar, que dirige o grupo Infoglobo até hoje.
Tive uma reunião antes com Rita e avisei que seu projeto era de difícil execução, mas que a editora iria com certeza falar de uma autobiografia com ela. Curiosamente, Rita não tinha muito interesse em escrever sobre sua própria trajetória – ela achava mais interessante provocar as pessoas com suas convicções sobre o veganismo ou com algumas ideias que acalentava sobre histórias infantis. Mas, falar sobre si mesma? Não.
Nos encontramos, na semana seguinte, e lá fomos em direção ao prédio onde eu trabalhara alguns anos antes. Entramos em uma sala cheia de gente. As pessoas ouviram sua ideia e disseram, como eu previra, que era um conceito complicado de se realizar, com custos altos de produção. E, também conforme previsto, falaram a respeito de editar uma obra sobre sua própria vida. Ela desconversou, dizendo que não confiava mais em sua memória e que poderia contar episódios diferentes da realidade ou mesmo inexistentes.
Um dos participantes da conversa, então, lembrou da fórmula utilizada no livro de Paul McCartney, escrito por Barry Miles, intitulado “Many Years From Now”. Nesse texto, Miles confronta a narrativa de Paul com a de pessoas que estavam nas histórias contadas pelo ex-beatle. Às vezes, a história batia e o personagem adicionava algum detalhe ao enredo contado pelo parceiro de John Lennon. Em outras ocasiões, porém, esses coadjuvantes tinham versões completamente da narrada pelo biografado. O livro poderia, então, contar com uma espécie de detetive virtual, que iria comparar o que Rita contava com o que lembravam as outras pessoas envolvidas na história.
O livro originalmente imaginado nunca foi lançado. Mas aquela reunião foi o ponto de partida para a autobiografia que seria lançada tempos depois pela Globo e mais vários livros publicados pela editora, incluindo alguns infantis (a obra sobre sua existência, por sinal conta com o recurso de “fact-checking” sobre determinados episódios). Rita deixou uma segunda autobiografia pronta, que será lançada post-mortem, no dia 22.
Gosto de pensar que foi a reunião que marquei que estimulou Rita Lee a publicar tantos livros, que contaram tantas histórias emocionantes, inspirando várias pessoas e mostrando o ser humano leve, irreverente e divertido que ela era.
Sua memória de curto prazo não era muito boa. Mas ela se lembrava perfeitamente de coisas ocorridas nos anos 1960. Naquela semana em que convivemos bastante, perguntei a ela qual tinha sido o momento mais interessante que havia vivido com os Mutantes. Ela se recordou, então, de um episódio em que a banda visitou o apartamento de Caetano Veloso na Avenida São Luiz, no centro de São Paulo. Gilberto Gil estava lá também e a dupla de baianos dava os retoques finais em “Panis et Circensis”, uma das canções mais emblemáticas do movimento musical tropicalista. Somente anos mais tarde, ela perceberia que estava presenciando um momento histórico para a música popular brasileira. Mas, naquele instante, recém-saída da adolescência, ela não tinha noção da importância daquilo que acabara de testemunhar.
Um de meus álbuns favoritos é justamente “Fruto Proibido”, que ela lançou em 1975 com a banda Tutti-Frutti. Tentei falar sobre as músicas do disco com ela, mas percebi que essa fase de sua vida não a agradava. Cada comentário que eu fazia sobre o disco, os solos de guitarra de Luiz Sérgio Carlini e a letra das músicas era recebido com silêncio ou indiferença. Quando falava, porém, sobre sua fase mais pop, do início dos anos 1980, a conversa fluía muito bem.
Apesar de ter morrido aos 75 anos, tinha muitos projetos – o próprio livro que será lançado daqui a duas semanas é uma prova disso. Ontem, prestei minha homenagem a ela no encerramento de um evento, lembrando que ela era, antes de tudo, uma pessoa irreverente e que tinha tido a coragem de mexer com uma das vacas sagradas da música popular brasileira na segunda metade dos anos 1970 – o cantor e compositor Chico Buarque. A canção? “Arrombou a Festa 2”, em parceria com Paulo Coelho. A música botava o dedo na ferida de um fenômeno que viria ser conhecido, mais tarde como “esquerda caviar” e continha a seguinte estrofe: “E o Chico na piscina grita logo pro garçom/ afasta este cálice e me traz Möet & Chandon”. Mas ela mesmo não se levava a sério. Um pouco mais à frente, nesta mesma canção, ela entoaria: “E a Rita Lee parece que não vai mais sair dessa/ Pois para fazer sucesso arrombou de novo a festa”.
Em sua autobiografia, ela encerra o texto imaginando como seria a reação a sua morte: “Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída”.
Não, Rita. Você é muito maior que isso – e estará sempre em nossas memórias, boas e más, como a trilha sonora de quem começou a escutar discos a partir dos anos 1970. Você é dona de obra que moldou personalidades e ajudou muitos jovens – como eu fui – a se conhecer melhor através de seus acordes e letras inspiradas, embaladas por uma voz sedosa e cativante.
Pelo pouco que pude conhecer, imagino a falta que você fará a seus amigos e a sua família. Pois, no meu caso, parece que uma parte importante de minha vida se foi. Que você leve sua franqueza, bom humor e leveza para o andar de cima e se divirta muito com os amigos que fará por lá. Tenho certeza de que Jim Morrison, John Lennon e Elvis Presley serão alguns deles.