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A impaciência que sentimos tem a ver com os algoritmos do mundo digital?

Ninguém mais tem paciência para escolher. Os aplicativos fazem isso para você, mas isso é um vislumbre do que a inteligência artificial prepara para nós

Redes sociais (MR.Cole_Photographer/Getty Images)
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isabelarovaroto

Publicado em 8 de dezembro de 2020 às 08h06.

Impacientes, intolerantes e irritados – essas são algumas características de quem vive neste início de século 21. Os jovens de hoje, principalmente os mais abastados, são assim. Mas a juventude, que nasceu em um mundo já digitalizado, não está sozinha neste tipo de atitude. Os mais velhos, aqueles que cresceram em um cenário totalmente analógico também incorporaram esse comportamento.

Não deixa de ser interessante. Os indivíduos que nasceram na era não digital – os baby boomers, por exemplo –, tiveram de exercer a paciência desde muito jovens, especialmente no que dizia respeito ao lazer. Uma das opções disponíveis na década de 1970, por exemplo, eram as brincadeiras de rua, que traziam a imprevisibilidade em cada uma de suas modalidades. Isso ajudou milhares de pessoas a lidar com episódios de euforia e frustração e a ter paciência quando enfrentavam derrotas.

Outra alternativa popular na época era justamente a televisão aberta.

Havia poucos canais à disposição da criançada: em São Paulo, tínhamos Cultura, Tupi, Globo, Record, Excelsior (que foi fechada pelo governo militar em 1970), Gazeta e Bandeirantes. Nada de streaming. Portanto, se um filme estivesse programado para passar no domingo, digamos, às 16:00, você deveria vê-lo – pois a chance de encontrá-lo novamente na grade de programação era próxima do impossível. Assim, se na hora de seu programa favorito acabasse a energia elétrica (o que era frequente nos anos 1970), a chance de rever aquela película perdida beirava a nulidade.

A gerações mais recentes conviveram com duas modalidades de conteúdo que trouxeram a programação diária próxima do gosto particular de cada um. A TV a cabo foi a primeira a surgir e, com uma grande variedade de canais, agradava as pessoas por ser bastante abrangente. Canais exclusivos de filmes? Há inúmeros. Só de séries? Idem. De notícias? Só em português há quatro e mais outros em línguas diferentes além do inglês.

Com mais de duzentos canais à disposição, a chance de encontrar alguma coisa que agrade o mais exigente dos espectadores é altíssima. Mas os serviços de streaming acabaram levando essa adequação ao gosto do cliente para um novo nível. Em primeiro lugar, empresas como a Netflix escolhem suas produções com base no cruzamento de dados de audiência, criando séries que estejam de acordo com os parâmetros que elevem a audiência.

Além disso, os algoritmos de medição e qualificação do público podem sugerir com precisão alternativas de séries e filmes que interessem aos seus telespectadores.

Portanto, uma menina de 10 anos recebe sugestões diferentes das enviadas a um homem de 50. Na prática, todo o trabalho de escolha foi facilitado pelos canais de streaming – e isso traz reflexos no comportamento do usuário.

Por quê?

Ao experimentar algo tão mastigado e preciso, os assinantes não precisam nem pensar para fazer suas escolhas. E não têm de exercitar sua paciência na hora de escolher o que assistir. Com isso, cria-se um hábito de pegar a opção daquilo que a curadoria eletrônica já julgou ser fabuloso para você.
Além disso, há a comodidade de se ver aquilo que se deseja naquela hora em que há disponibilidade de tempo. Você quer ver um filme de mistério e tem duas horas para isso. É só buscar as opções no menu e – voilá! – apertar a tecla “enter” do controle remoto.

No e-commerce, não é diferente. Os algoritmos já pré-selecionam o que precisamos ou vão aprendendo com novas compras o que já desejamos, mas ainda não percebemos – ou seja, não precisamos nem pensar para consumir. A máquina faz todo o trabalho por nós.

Qual é o reflexo de tudo isso?

Ninguém mais tem paciência para escolher um filme ou uma refeição. Os aplicativos fazem isso para você, mas isso é apenas um vislumbre opaco do que as ferramentas de inteligência artificial preparam para nós daqui a pouco tempo.

Essa comodidade pode ser perigosa, pois acaba nos estimulando a impaciência. No início da pandemia, com a parada que tivemos com a quarentena, imaginei que estaríamos diante de uma situação que nos ajudaria a exercitar a paciência. No começo, esse processo – turbinado pelo medo – até ocorreu. Mas, como o isolamento durou mais do que imaginávamos, as pessoas voltaram à estaca zero em termos de placidez.

Se sempre tivermos tudo na palma das mãos, como é que conseguiremos ter paciência? Quando é que teremos a oportunidade de exercitar uma capacidade tão rara nos dias de hoje? Se o cenário é adverso, a solução está no interior de cada um. É um processo doloroso e às vezes longo, com inúmeras recaídas em seu caminho. Mas o resultado positivo é espantoso. O mundo de século 21 continua cheio de ocorrências imprevisíveis e aleatórias. Sem um pouco de paciência, teremos de lidar diariamente com emoções negativas. Vale a pena?

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Impacientes, intolerantes e irritados – essas são algumas características de quem vive neste início de século 21. Os jovens de hoje, principalmente os mais abastados, são assim. Mas a juventude, que nasceu em um mundo já digitalizado, não está sozinha neste tipo de atitude. Os mais velhos, aqueles que cresceram em um cenário totalmente analógico também incorporaram esse comportamento.

Não deixa de ser interessante. Os indivíduos que nasceram na era não digital – os baby boomers, por exemplo –, tiveram de exercer a paciência desde muito jovens, especialmente no que dizia respeito ao lazer. Uma das opções disponíveis na década de 1970, por exemplo, eram as brincadeiras de rua, que traziam a imprevisibilidade em cada uma de suas modalidades. Isso ajudou milhares de pessoas a lidar com episódios de euforia e frustração e a ter paciência quando enfrentavam derrotas.

Outra alternativa popular na época era justamente a televisão aberta.

Havia poucos canais à disposição da criançada: em São Paulo, tínhamos Cultura, Tupi, Globo, Record, Excelsior (que foi fechada pelo governo militar em 1970), Gazeta e Bandeirantes. Nada de streaming. Portanto, se um filme estivesse programado para passar no domingo, digamos, às 16:00, você deveria vê-lo – pois a chance de encontrá-lo novamente na grade de programação era próxima do impossível. Assim, se na hora de seu programa favorito acabasse a energia elétrica (o que era frequente nos anos 1970), a chance de rever aquela película perdida beirava a nulidade.

A gerações mais recentes conviveram com duas modalidades de conteúdo que trouxeram a programação diária próxima do gosto particular de cada um. A TV a cabo foi a primeira a surgir e, com uma grande variedade de canais, agradava as pessoas por ser bastante abrangente. Canais exclusivos de filmes? Há inúmeros. Só de séries? Idem. De notícias? Só em português há quatro e mais outros em línguas diferentes além do inglês.

Com mais de duzentos canais à disposição, a chance de encontrar alguma coisa que agrade o mais exigente dos espectadores é altíssima. Mas os serviços de streaming acabaram levando essa adequação ao gosto do cliente para um novo nível. Em primeiro lugar, empresas como a Netflix escolhem suas produções com base no cruzamento de dados de audiência, criando séries que estejam de acordo com os parâmetros que elevem a audiência.

Além disso, os algoritmos de medição e qualificação do público podem sugerir com precisão alternativas de séries e filmes que interessem aos seus telespectadores.

Portanto, uma menina de 10 anos recebe sugestões diferentes das enviadas a um homem de 50. Na prática, todo o trabalho de escolha foi facilitado pelos canais de streaming – e isso traz reflexos no comportamento do usuário.

Por quê?

Ao experimentar algo tão mastigado e preciso, os assinantes não precisam nem pensar para fazer suas escolhas. E não têm de exercitar sua paciência na hora de escolher o que assistir. Com isso, cria-se um hábito de pegar a opção daquilo que a curadoria eletrônica já julgou ser fabuloso para você.
Além disso, há a comodidade de se ver aquilo que se deseja naquela hora em que há disponibilidade de tempo. Você quer ver um filme de mistério e tem duas horas para isso. É só buscar as opções no menu e – voilá! – apertar a tecla “enter” do controle remoto.

No e-commerce, não é diferente. Os algoritmos já pré-selecionam o que precisamos ou vão aprendendo com novas compras o que já desejamos, mas ainda não percebemos – ou seja, não precisamos nem pensar para consumir. A máquina faz todo o trabalho por nós.

Qual é o reflexo de tudo isso?

Ninguém mais tem paciência para escolher um filme ou uma refeição. Os aplicativos fazem isso para você, mas isso é apenas um vislumbre opaco do que as ferramentas de inteligência artificial preparam para nós daqui a pouco tempo.

Essa comodidade pode ser perigosa, pois acaba nos estimulando a impaciência. No início da pandemia, com a parada que tivemos com a quarentena, imaginei que estaríamos diante de uma situação que nos ajudaria a exercitar a paciência. No começo, esse processo – turbinado pelo medo – até ocorreu. Mas, como o isolamento durou mais do que imaginávamos, as pessoas voltaram à estaca zero em termos de placidez.

Se sempre tivermos tudo na palma das mãos, como é que conseguiremos ter paciência? Quando é que teremos a oportunidade de exercitar uma capacidade tão rara nos dias de hoje? Se o cenário é adverso, a solução está no interior de cada um. É um processo doloroso e às vezes longo, com inúmeras recaídas em seu caminho. Mas o resultado positivo é espantoso. O mundo de século 21 continua cheio de ocorrências imprevisíveis e aleatórias. Sem um pouco de paciência, teremos de lidar diariamente com emoções negativas. Vale a pena?

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