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A grande aposta de Michael Burry contra o bitcoin vai dar certo?

Investidor que previu crise de 2008 tem disparado contra as criptomoedas, porém diferenças entre os ativos podem ser responsáveis por um desfecho diferente

Michael Burry no lançamento do filme "A Grande Aposta" (Astrid Stawiarz / Correspondente/Getty Images)
Michael Burry no lançamento do filme "A Grande Aposta" (Astrid Stawiarz / Correspondente/Getty Images)
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Marcelo Miranda

Publicado em 30 de junho de 2021 às, 15h46.

Última atualização em 30 de junho de 2021 às, 15h47.

Tive oportunidade de testemunhar de perto o desenrolar da crise de 2008 nos Estados Unidos. Em 2006 eu consegui o meu primeiro emprego de trader em Wall Street, na mesa de operações do Deutsche Bank de Nova York, onde trabalhei até 2010.

Eu mal sabia que em pouco tempo estaria no olho do furacão da maior crise financeira global do século. Na verdade, até esse momento ninguém sabia exatamente o que estava por vir. Ninguém exceto o jovem médico e gestor Michael Burry, que apostou contra a bolha especulativa que estava se formando. Os eventos que culminaram na chamada crise do subprime foram retratados com grande fidelidade no filme “A Grande Aposta” estrelado por Christian Bale, que interpretou Michael Burry.

Lembro de um episódio em 2006, quando eu estava começando a procurar um emprego nos Estados Unidos, uma das primeiras entrevistas que fiz foi no banco Lehman Brothers. Naquela época o sonho de todo recém-formado era trabalhar para o Lehman. Grandes bancos com legados maiores como Goldman Sachs, Morgan Stanley e JP Morgan ficavam como segunda opção dos jovens vindo das grandes universidades americanas.

Logo no início da entrevista um trader júnior da Lehman começou falando sobre seus modelos de análise e me fazendo perguntas sobre os fatores de risco. Ficou claro que modelar o risco de pré-pagamento (pagamento antecipado de títulos) era a sua principal preocupação. Quando um devedor paga o título antecipadamente o investidor pode não encontrar outro título que pague o mesmo retorno, principalmente em um ambiente de taxas de juros caindo.

Quando perguntei sobre o risco de default (risco de não pagamento do título) o trader riu e respondeu: “Nós não nos preocupamos muito com isso”. Dois anos depois, o Lehman estaria fechando suas portas definitivamente. Foi bom não ter passado naquela entrevista de emprego.

Voltando ao Michael Burry, a sua grande aposta foi enxergar antes de qualquer um o risco de default em um sistema financeiro com excesso de alavancagem. Esse excesso no mercado imobiliário e bancário inflou os preços dos imóveis, ações e principalmente de derivativos baseados nos preços de títulos hipotecários. Burry então operou “vendido” contra essa bolha e conseguiu retornos altíssimos para seu fundo, o Scion Capital, quando o sistema financeiro entrou em colapso em 2008.

Michael Burry estava certo na época e ninguém duvida que possa estar certo novamente em suas publicações recentes, quando chama atenção para a situação do mercado hoje. Mais uma vez, Burry chama atenção para uma bolha especulativa nos mercados em geral. Ele também direcionou seus holofotes para as criptomoedas, questionando principalmente o grau de alavancagem nesse mercado.

Michael está certo. Sem alavancagem o mercado de criptomoedas não teria evoluído como o fez, partindo do zero em 2009 para quase 1,5 trilhões de dólares em capitalização de mercado atualmente.

Somente o USDT (Tether), stablecoin que oferece uma paridade com o dólar, que é sempre citada como uma forma de aumentar a alavancagem, possui atualmente o equivalente a 300 bilhões de reais em circulação. Os protocolos DeFi, que permitem alavancagens e empréstimos de criptos, possuem mais de 260 bilhões de reais como lastro. Corretoras que permitem que o usuário opere criptoativos com uma alavancagem de dez a cem vezes maior que seu patrimônio, surgem e crescem em países que possuem uma regulação mais amigável em relação a esta classe de ativos.

A grande diferença entre a alavancagem entre o mercado de criptomoedas e o que Michael Burry detectou corretamente na crise do mercado imobiliário americano na década de 2000 talvez seja justamente a natureza do ativo em questão, ou seja ativos virtuais baseados em códigos contra ativos reais baseados em tijolos e concreto.

Por mais que os engenheiros financeiros dos bancos de Wall Street fossem criativos em construir e vender novos instrumentos cada vez mais arriscados, eles ainda assim se baseavam em algo da economia real. No momento que os fatores de risco mudaram na economia real com os primeiros sinais de default nos pagamentos dos financiamentos imobiliários, a pirâmide começou a ruir e foi questão de tempo até que todo sistema entrasse em colapso.

No filme, temos aquele momento em que analistas vão à Flórida e verificam in loco que o que estava nas planilhas dos bancos não condizia com a realidade.

Na moderna criptoeconomia esses fatores de risco não são tão palpáveis. Com certeza um novo colapso global da economia traria consequências desastrosas para as criptomoedas. Porém, se olharmos somente para criptomoedas isoladamente, os gatilhos para o estouro dessa alavancagem não são tão conhecidos e a possibilidade de novas formas de aumentar a alavancagem estão sempre presentes com inovações, vide os protocolos DeFi.

Em uma cena clássica de “A Grande Aposta”, Christian Bale está deitado no chão do seu escritório, olhando para o teto, praticamente aceitando a derrota pouco antes do mercado entrar em queda livre a seu favor. Essa espera pode ser mais longa e aflitiva em sua nova aposta contra o bitcoin, uma vez que esse é um mercado ainda bastante cruel com aqueles que decidem ir contra.