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Viva o jeitinho brasileiro

Bom senso acima da lei para combater a corrupção

CORRUPÇÃO: o jeitinho brasileiro / iStock | Getty Images
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Da Redação

Publicado em 26 de outubro de 2017 às 12h36.

Será que o Brasil conseguirá vencer a corrupção? Ninguém, hoje, negocia um esquema com a mesma certeza de impunidade de alguns anos atrás. Ainda não sabemos se os líderes políticos da alta corrupção serão efetivamente punidos; mas tudo indica que a vida deles ficará mais difícil. Isso é um ganho. Há uma cultura crescente de tolerância zero com a corrupção, que pode nos legar uma política mais honesta.

Será uma tragédia se, na mesma leva, produzir uma cultura mais inflexível. É o que tem acontecido, infelizmente, conforme o ímpeto anticorrupção vai descendo até as pequenas coisas e passa a considerar qualquer desvio de regra como um mal em si mesmo. Aos poucos, o zelo desmedido na aplicação das regras vai acabando justamente com alguns aspectos positivos de nossa cultura.

Toda regra ou lei é uma generalização. Uma uniformização de conduta que funciona para uma maioria de casos, garantindo um resultado visto como positivo e evitando alguns riscos mais graves. Em alguns casos, contudo, a aplicação dela pode gerar o efeito oposto: produzir ineficiência, altos custos sem grandes (ou nenhum) benefício. Nesses casos, na medida do possível, seria bom que a norma fosse violada. Afinal, a lei é feita para o bem-estar humano, ela serve ao homem, e não o contrário.

Um exemplo disso é o sinal de trânsito para pedestres. Numa rua movimentada durante o dia, ele cumpre uma função importante: permitir que o trânsito flua e que o pedestre fique seguro. Por isso mesmo, é bastante seguida. Mas há uma série de casos nos quais ele se torna inócuo: quando nenhum carro está vindo, a maioria dos pedestres não vê problema nenhum em atravessar no vermelho. Durante a madrugada, a regra pode até ser nociva: além de perder tempo, o pedestre corre mais riscos ao ficar parado esperando o sinal abrir para ele.

O Brasil sempre soube contornar as regras para reduzir a ineficiência do sistema. Felizmente, não multamos pedestres! Isso é especialmente importante por aqui porque temos regras, em geral, ruins, que criam custos altos para serem cumpridas e cujo benefício é duvidoso. Podemos pensar nas inúmeras regulamentações às quais qualquer negócio está submetido, nas leis de trânsito já mencionadas ou normas de segurança. Nesses casos, aquilo que chamamos de “bom senso” indica um caminho óbvio, ainda que viole a letra da regra.

Outro dia um exemplo ocorreu com meu filho de 4 anos. Ele bateu o dente, inflamou a gengiva, a mãe o levou no médico e ele receitou um antibiótico. Ao chegar na farmácia com o filho no colo, ela apresentou a receita ao farmacêutico e… problema: o médico receitara uma dosagem do antibiótico que não é mais fabricada. A dosagem padrão atual é próxima à que o médico receitara, mas não é a mesma. Sendo assim, a posologia indicada por ele talvez tivesse que mudar. O médico estava em horário de almoço e incomunicável. Voltar ao consultório, longe dali, para pegar uma receita nova significaria perder o dia inteiro com a criança ali, evidentemente sofrendo e precisando do remédio.

O que fazer? Pela regra, ela não levava o remédio. Quem se beneficiava disso? Rigorosamente ninguém, embora trouxesse danos para uma criança doente. Dado o medo que funcionários de farmácia têm de quebrarem a regra da receita médica e serem severamente punidos, a história ia se encaminhando para o pior desfecho. Felizmente, uma funcionária, dotada de algum bom senso, explicou para a mãe que ela teria que ligar para o médico para checar a nova posologia, mas podia levar o remédio desde já e dar a primeira dose.

A decisão dessa funcionária traz algum risco de que a regra deixe de existir, de que voltemos aos velhos dias em que antibióticos eram vendidos livremente, colocando em risco a saúde pública? Não. Justamente porque havia uma autoridade local (o farmacêutico ou quem cuida da farmácia) dotada do conhecimento das circunstâncias para fazer aquele juízo que vai contra a letra da lei, mas obedece a seu espírito: garantir que as pessoas vivam melhor.

No caso do meu filho, o bom senso venceu. Em tantos outros, a transformação da regra em valor absoluto nos causa mal. O jeitinho brasileiro sempre foi um jeito de contornar isso, de apelar ao bom senso de cidadãos e fiscais. É por isso que, mesmo com regras tão ruins e altas barreiras regulatórias, a informalidade existe e permite que muitas pessoas gerem valor e se sustentem. Sem ela, a miséria seria geral. Combater a corrupção, que rouba de todos para dar a alguns, é diferente de virar um caxias das leis a todo custo. Quem age assim prejudica a sociedade, e frustra mesmo a finalidade primordial de qualquer lei.

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Será que o Brasil conseguirá vencer a corrupção? Ninguém, hoje, negocia um esquema com a mesma certeza de impunidade de alguns anos atrás. Ainda não sabemos se os líderes políticos da alta corrupção serão efetivamente punidos; mas tudo indica que a vida deles ficará mais difícil. Isso é um ganho. Há uma cultura crescente de tolerância zero com a corrupção, que pode nos legar uma política mais honesta.

Será uma tragédia se, na mesma leva, produzir uma cultura mais inflexível. É o que tem acontecido, infelizmente, conforme o ímpeto anticorrupção vai descendo até as pequenas coisas e passa a considerar qualquer desvio de regra como um mal em si mesmo. Aos poucos, o zelo desmedido na aplicação das regras vai acabando justamente com alguns aspectos positivos de nossa cultura.

Toda regra ou lei é uma generalização. Uma uniformização de conduta que funciona para uma maioria de casos, garantindo um resultado visto como positivo e evitando alguns riscos mais graves. Em alguns casos, contudo, a aplicação dela pode gerar o efeito oposto: produzir ineficiência, altos custos sem grandes (ou nenhum) benefício. Nesses casos, na medida do possível, seria bom que a norma fosse violada. Afinal, a lei é feita para o bem-estar humano, ela serve ao homem, e não o contrário.

Um exemplo disso é o sinal de trânsito para pedestres. Numa rua movimentada durante o dia, ele cumpre uma função importante: permitir que o trânsito flua e que o pedestre fique seguro. Por isso mesmo, é bastante seguida. Mas há uma série de casos nos quais ele se torna inócuo: quando nenhum carro está vindo, a maioria dos pedestres não vê problema nenhum em atravessar no vermelho. Durante a madrugada, a regra pode até ser nociva: além de perder tempo, o pedestre corre mais riscos ao ficar parado esperando o sinal abrir para ele.

O Brasil sempre soube contornar as regras para reduzir a ineficiência do sistema. Felizmente, não multamos pedestres! Isso é especialmente importante por aqui porque temos regras, em geral, ruins, que criam custos altos para serem cumpridas e cujo benefício é duvidoso. Podemos pensar nas inúmeras regulamentações às quais qualquer negócio está submetido, nas leis de trânsito já mencionadas ou normas de segurança. Nesses casos, aquilo que chamamos de “bom senso” indica um caminho óbvio, ainda que viole a letra da regra.

Outro dia um exemplo ocorreu com meu filho de 4 anos. Ele bateu o dente, inflamou a gengiva, a mãe o levou no médico e ele receitou um antibiótico. Ao chegar na farmácia com o filho no colo, ela apresentou a receita ao farmacêutico e… problema: o médico receitara uma dosagem do antibiótico que não é mais fabricada. A dosagem padrão atual é próxima à que o médico receitara, mas não é a mesma. Sendo assim, a posologia indicada por ele talvez tivesse que mudar. O médico estava em horário de almoço e incomunicável. Voltar ao consultório, longe dali, para pegar uma receita nova significaria perder o dia inteiro com a criança ali, evidentemente sofrendo e precisando do remédio.

O que fazer? Pela regra, ela não levava o remédio. Quem se beneficiava disso? Rigorosamente ninguém, embora trouxesse danos para uma criança doente. Dado o medo que funcionários de farmácia têm de quebrarem a regra da receita médica e serem severamente punidos, a história ia se encaminhando para o pior desfecho. Felizmente, uma funcionária, dotada de algum bom senso, explicou para a mãe que ela teria que ligar para o médico para checar a nova posologia, mas podia levar o remédio desde já e dar a primeira dose.

A decisão dessa funcionária traz algum risco de que a regra deixe de existir, de que voltemos aos velhos dias em que antibióticos eram vendidos livremente, colocando em risco a saúde pública? Não. Justamente porque havia uma autoridade local (o farmacêutico ou quem cuida da farmácia) dotada do conhecimento das circunstâncias para fazer aquele juízo que vai contra a letra da lei, mas obedece a seu espírito: garantir que as pessoas vivam melhor.

No caso do meu filho, o bom senso venceu. Em tantos outros, a transformação da regra em valor absoluto nos causa mal. O jeitinho brasileiro sempre foi um jeito de contornar isso, de apelar ao bom senso de cidadãos e fiscais. É por isso que, mesmo com regras tão ruins e altas barreiras regulatórias, a informalidade existe e permite que muitas pessoas gerem valor e se sustentem. Sem ela, a miséria seria geral. Combater a corrupção, que rouba de todos para dar a alguns, é diferente de virar um caxias das leis a todo custo. Quem age assim prejudica a sociedade, e frustra mesmo a finalidade primordial de qualquer lei.

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