Mau momento para voltarmos ao stalinismo
Uma democracia sólida precisa também de uma boa esquerda: coerente, democrática e apaziguada
Publicado em 23 de janeiro de 2020 às, 12h46.
É um péssimo momento para ser de centro-direita. Com uma direita mais extremada no poder, sendo o centro de atenções mundial e pautando a imprensa, sobra pouco espaço para vozes que até partilham de alguns dos valores do governo (liberdade econômica, combate ao crime e à corrupção, por exemplo) mas que gostariam de balanceá-los com outros e com fortalecimento, e não enfraquecimento, das instituições que garantem nossa democracia.
Para a esquerda, contudo, o momento tinha tudo para ser ótimo. Se a direita radical está no poder, haverá muito em que bater sem ter que fazer ressalva alguma. Se vemos ataque à imprensa, à ciência, à universidade, seria a oportunidade perfeita para a esquerda tomar esses valores como seus e se firmar como a grande defensora deles. Da mesma forma, se a democracia é relativizada no discurso presidencial e de seu entorno (com até secretário fazendo discurso nazista), é o momento de tomar para si a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Por algum motivo que não conheço, o que muitos na esquerda preferem fazer neste momento é resgatar a apologia ao stalinismo e o saudosismo com a URSS. Ao mesmo tempo, antagonizam as expressões normais da sociedade brasileira, como sua religião, música e história.
Numa mesma semana, vimos o militante do PCB Jones Manoel – que faz sucesso nas redes sociais – defender os crimes de Stalin. A deputada do PSOL Talíria Petrone resolveu homenagear os 96 anos da morte Lênin.
O site The Intercept Brasil questionou ambas as posturas, com razão. Mas os defensores do autoritarismo já têm a justificativa na ponta da língua: a violência de Stálin e Lênin foi apenas em resposta às forças da reação que se insurgiu contra eles. A consequência implícita: quando atos de violência no presente for do interesse deles, usarão a mesma desculpa da defesa contra inimigos.
Claro que Lênin não é Stalin. Por mais que tenha cometido atrocidades, foi também uma pessoa-chave num momento conturbado, no meio de uma guerra civil em que ninguém era inocente. O czarismo não era mais bondoso que os comunistas. Mesmo assim, comandou assassinatos e perseguiu oponentes políticos de uma forma que uma democracia não pode jamais tolerar ou celebrar. Já Stalin foi só um tirano da pior espécie mesmo, um monstro totalitário que transformou em pesadelo a vida de milhões de pessoas inocentes que viveram sob seu jugo.
É incrível como a esquerda institucionalizada no Brasil ainda não se libertou desses encostos. Lembro que, quando entrevistei Manuela D’Ávila na bancada do Roda Viva, surgiu a pergunta sobre Stalin e a URSS. Eu, em minha ingenuidade achei que ela tiraria isso de letra: basta dizer que não tem nada a ver com Stalin, que a esquerda evoluiu, que hoje defende democracia e direitos humanos, que a URSS cometeu crimes mas o ideal de igualdade continua valendo, etc. Uma resposta bem óbvia até. Para minha surpresa, ela não fez isso: não foi capaz de criticar Stalin, tentou relativizar, dizer que o Ocidente capitalista também cometia crimes. Tudo porque nossa esquerda, até hoje, não foi capaz de admitir que escolheu o lado errado da Guerra Fria. Os EUA fizeram muita coisa errada, mas nada que se compare à brutalidade das autocracias do outro lado da cortina de ferro.
Também nesta semana, o colunista da Folha Anderson França fez um texto insinuando que todos os artistas do sertanejo, do axé e do pagode, bem como os maiores comediantes stand-up (ou seja, os artistas mais populares do Brasil), por não se engajarem em militância ativa contra o governo Bolsonaro, são defensores dele e quiçá simpatizantes do nazismo. O texto foi compartilhado por ninguém menos que Fernando Haddad no Twitter. Só me ocorre interrogar: será que antagonizar os artistas mais populares do Brasil e a arte que eles fazem é uma boa estratégia para tornar a esquerda mais popular?
Não sou de esquerda, mas afirmo sem receio que uma democracia sólida precisa também de uma boa esquerda: coerente, democrática, apaziguada com os fundamentos da economia moderna mas que nem por isso deixe de lutar por mais igualdade. O momento, aliás, é propício para que ela faça esse movimento e conquiste os moderados. Muitos – não todos! – infelizmente, preferem reencenar as velhas disputas entre stalinistas e trotskystas de um DCE dos anos 70. Hora de evoluir!