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Colômbia: referendo e legitimidade

Em 2003, quando da decisão impopular de se juntar aos EUA na guerra contra o Iraque, Tony Blair foi questionado duramente: a maior parte do povo inglês era contra – como ele poderia contrariar a vontade da população? Justificou-se dizendo que, tendo sido eleito, tinha o mandato para tomar decisões que lhe parecessem melhores, sem […]

VOTAÇÃO NA COLÔMBIA: população rejeito a proposta de paz com as Farc / Jaime Saldarriaga/ Reuters
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Da Redação

Publicado em 6 de outubro de 2016 às 13h28.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h21.

Em 2003, quando da decisão impopular de se juntar aos EUA na guerra contra o Iraque, Tony Blair foi questionado duramente: a maior parte do povo inglês era contra – como ele poderia contrariar a vontade da população? Justificou-se dizendo que, tendo sido eleito, tinha o mandato para tomar decisões que lhe parecessem melhores, sem necessidade de consultar a população o tempo todo. Hoje em dia, podemos dizer que a invasão do Iraque revelou-se, no mínimo, dúbia. O motivo que justificou a guerra não se materializou – as armas de destruição em massa jamais foram encontradas – e a situação na região é profundamente instável. O Iraque cada vez mais parece fadado a ser um Estado-nação falido, o que não pode ser integralmente atribuído à invasão, mas ela certamente contribuiu para a instabilidade na região.

Naquela ocasião, um referendo talvez tivesse evitado uma ação desastrada do governo. Hoje em dia, o plebiscito se torna uma maneira cada vez mais comum de dar à população a oportunidade de opinar sobre grandes questões nacionais. E, em pelo menos três casos recentes, a resposta das urnas foi na direção oposta do que esperavam todos os especialistas. Em 2005, a população francesa rejeitou a Constituição da União Europeia. Na primeira metade deste ano, os ingleses votaram por sair da UE. E agora, no fim de semana, a Colômbia votou “Não” para a proposta de acordo com as Farc.

Como em tantas outras ocasiões, o referendo colombiano revela as fraquezas e pontos cegos da democracia como forma de solução de problemas. As áreas diretamente afetadas pelos conflitos com as Farc e demais guerrilhas e grupos paramilitares, bem como a capital Bogotá, votaram majoritariamente pelo “Sim”. Quem votou “Não”, e levou a votação, é justamente quem sofre menos com os conflitos – que, contudo, estão muito menos severos hoje do que eram uma década atrás.

Outros fatores podem ter pesado nesse resultado que surpreendeu os analistas: a certeza de vitória do “Sim” pode ter deixado muitos cidadãos complacentes, certos de que não era necessário ir votar, pois a vitória de seu lado estava garantida. Por fim, o furação Matthew e as tempestades a ele associadas dificultaram o acesso de muitas pessoas. O problema é que refazer o referendo por quaisquer desses problemas é abrir uma porta sem volta, abrir irrevogavelmente a temporada de caça por pretextos para se anular qualquer votação cujo resultado não agrade. Democracia de verdade é ser capaz de aceitar a vontade da maioria da população mesmo quando ela é, do nosso ponto de vista, equivocada.

Também não é como se a votação de domingo anulasse o processo de paz. O governo reescreverá o acordo, com menos concessões às FARCs – talvez sem garantia de assentos parlamentares para os ex-membros. Seja como for, a versão rejeitada já era uma grande vitória das forças da lei: as Farc, que antes diziam não aceitar nada menos que a revolução socialista, entregariam suas armas e virariam uma força política normal, dentro das regras do jogo democrático. Algo não muito diferente do que aconteceu com o IRA na Irlanda do Norte, outro grupo terrorista que, pacificado, pôde ingressar na vida civil. Ademais, o presidente havia garantido um ponto importante: não haveria anistia incondicional. Quem cometeu crimes contra a humanidade seria julgado, ainda que a pena não fosse severa.

Dá para entender a revolta de muitos colombianos. Aceitar líderes de uma facção criminosa como participantes privilegiados da vida política nacional é, para muitos, um tapa na cara. Para esses, os benefícios da paz não compensam o dano ao orgulho nacional. Talvez como para muitos ingleses os ganhos econômicos não compensassem o desejo pela própria soberania.

Para o futuro da Colômbia, a paz com a maior parte dos grupos armados e guerrilhas é um passo fundamental. Sonhar com a erradicação violenta deles é utópico. Por mais que o governo tenha agora a clara e inconteste superioridade, o tempo e os gastos (em recursos e vidas) para finalmente acabar com as Farc e demais grupos é simplesmente proibitivo, quiçá impossível. Para se virar a página, é preciso de alguma maneira dar um caminho de volta para as centenas de milhares de pessoas que optaram pela violência; ou então elas ficarão na violência até a morte.

É fácil, assim, desmerecer o resultado do referendo como uma estupidez; mas se um novo acordo, menos leniente talvez, for combinado com sucesso, a Colômbia poderá finalmente unir as demandas da paz com as da justiça (outro jeito de se referir ao orgulho de um povo, sua capacidade de retribuir o mal sofrido). Coisa que está mal resolvido aqui mesmo no Brasil. A mensagem de um referendo talvez não seja a mais sensata do ponto de vista técnico, mas revela pulsões e desejos aos quais temos que dar ouvidos. Democracia não é o reinado dos especialistas sobre as massas; e, em muitos casos, é bom que não seja.

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Em 2003, quando da decisão impopular de se juntar aos EUA na guerra contra o Iraque, Tony Blair foi questionado duramente: a maior parte do povo inglês era contra – como ele poderia contrariar a vontade da população? Justificou-se dizendo que, tendo sido eleito, tinha o mandato para tomar decisões que lhe parecessem melhores, sem necessidade de consultar a população o tempo todo. Hoje em dia, podemos dizer que a invasão do Iraque revelou-se, no mínimo, dúbia. O motivo que justificou a guerra não se materializou – as armas de destruição em massa jamais foram encontradas – e a situação na região é profundamente instável. O Iraque cada vez mais parece fadado a ser um Estado-nação falido, o que não pode ser integralmente atribuído à invasão, mas ela certamente contribuiu para a instabilidade na região.

Naquela ocasião, um referendo talvez tivesse evitado uma ação desastrada do governo. Hoje em dia, o plebiscito se torna uma maneira cada vez mais comum de dar à população a oportunidade de opinar sobre grandes questões nacionais. E, em pelo menos três casos recentes, a resposta das urnas foi na direção oposta do que esperavam todos os especialistas. Em 2005, a população francesa rejeitou a Constituição da União Europeia. Na primeira metade deste ano, os ingleses votaram por sair da UE. E agora, no fim de semana, a Colômbia votou “Não” para a proposta de acordo com as Farc.

Como em tantas outras ocasiões, o referendo colombiano revela as fraquezas e pontos cegos da democracia como forma de solução de problemas. As áreas diretamente afetadas pelos conflitos com as Farc e demais guerrilhas e grupos paramilitares, bem como a capital Bogotá, votaram majoritariamente pelo “Sim”. Quem votou “Não”, e levou a votação, é justamente quem sofre menos com os conflitos – que, contudo, estão muito menos severos hoje do que eram uma década atrás.

Outros fatores podem ter pesado nesse resultado que surpreendeu os analistas: a certeza de vitória do “Sim” pode ter deixado muitos cidadãos complacentes, certos de que não era necessário ir votar, pois a vitória de seu lado estava garantida. Por fim, o furação Matthew e as tempestades a ele associadas dificultaram o acesso de muitas pessoas. O problema é que refazer o referendo por quaisquer desses problemas é abrir uma porta sem volta, abrir irrevogavelmente a temporada de caça por pretextos para se anular qualquer votação cujo resultado não agrade. Democracia de verdade é ser capaz de aceitar a vontade da maioria da população mesmo quando ela é, do nosso ponto de vista, equivocada.

Também não é como se a votação de domingo anulasse o processo de paz. O governo reescreverá o acordo, com menos concessões às FARCs – talvez sem garantia de assentos parlamentares para os ex-membros. Seja como for, a versão rejeitada já era uma grande vitória das forças da lei: as Farc, que antes diziam não aceitar nada menos que a revolução socialista, entregariam suas armas e virariam uma força política normal, dentro das regras do jogo democrático. Algo não muito diferente do que aconteceu com o IRA na Irlanda do Norte, outro grupo terrorista que, pacificado, pôde ingressar na vida civil. Ademais, o presidente havia garantido um ponto importante: não haveria anistia incondicional. Quem cometeu crimes contra a humanidade seria julgado, ainda que a pena não fosse severa.

Dá para entender a revolta de muitos colombianos. Aceitar líderes de uma facção criminosa como participantes privilegiados da vida política nacional é, para muitos, um tapa na cara. Para esses, os benefícios da paz não compensam o dano ao orgulho nacional. Talvez como para muitos ingleses os ganhos econômicos não compensassem o desejo pela própria soberania.

Para o futuro da Colômbia, a paz com a maior parte dos grupos armados e guerrilhas é um passo fundamental. Sonhar com a erradicação violenta deles é utópico. Por mais que o governo tenha agora a clara e inconteste superioridade, o tempo e os gastos (em recursos e vidas) para finalmente acabar com as Farc e demais grupos é simplesmente proibitivo, quiçá impossível. Para se virar a página, é preciso de alguma maneira dar um caminho de volta para as centenas de milhares de pessoas que optaram pela violência; ou então elas ficarão na violência até a morte.

É fácil, assim, desmerecer o resultado do referendo como uma estupidez; mas se um novo acordo, menos leniente talvez, for combinado com sucesso, a Colômbia poderá finalmente unir as demandas da paz com as da justiça (outro jeito de se referir ao orgulho de um povo, sua capacidade de retribuir o mal sofrido). Coisa que está mal resolvido aqui mesmo no Brasil. A mensagem de um referendo talvez não seja a mais sensata do ponto de vista técnico, mas revela pulsões e desejos aos quais temos que dar ouvidos. Democracia não é o reinado dos especialistas sobre as massas; e, em muitos casos, é bom que não seja.

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