Aprendendo a viver com o terrorismo
“A França terá que aprender a viver com o terrorismo.” O primeiro-ministro francês Manuel Valls foi execrado por essas palavras ditas após o atentado do dia 14 de julho em Nice. Infelizmente, o que ele diz é uma verdade — e não só para a França. O Ocidente está, a contragosto, acordando para a verdade […]
Publicado em 21 de julho de 2016 às, 11h27.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h45.
“A França terá que aprender a viver com o terrorismo.” O primeiro-ministro francês Manuel Valls foi execrado por essas palavras ditas após o atentado do dia 14 de julho em Nice. Infelizmente, o que ele diz é uma verdade — e não só para a França. O Ocidente está, a contragosto, acordando para a verdade de que seguirá sendo palco de terrorismo.
Serviço secreto e força policial podem sempre ser reforçados, mas numa época em que um caminhão basta para causar dano na casa das centenas de vidas, é ingênuo pensar que conseguirão, algum dia, dar conta de prevenir todos os ataques e prender todos os terroristas. E quanto mais eficazes forem, necessariamente mais intrusivo terá que ser o aparato de repressão estatal. Muitas pessoas de bem terão que pagar o preço – em comunicações vigiadas, movimentos restritos e corpos rotineiramente apalpados – pela maior eficácia em identificar criminosos. E é provável que nem isso resolva. Será que a Europa caminha para o cotidiano de Israel?
Uma coisa é caçar e reprimir extremistas, parte absolutamente necessária do combate ao terrorismo. Outra, mais de longo prazo, é entender as raízes do problema e bolar jeito de arrancá-las. O islã tem, hoje em dia, uma inegável tolerância com outros grupos (inclusive muçulmanos de outras vertentes). Não nada é inscrito na rocha: as religiões podem mudar – no passado, o islã já soube ser mais tolerante e o cristianismo, hoje uma religião pacífica, era o mais intolerante séculos antes. Resta saber como estimular variantes não-violentas do islã e esvaziar as mais antissociais.
Ainda assim, é uma minoria ínfima mesmo dentre os muçulmanos mais fanáticos que entram para o terrorismo. O pai do atirador da boate de Orlando, por exemplo – um afegão que vive nos EUA – condenou a homossexualidade, que ele acredita que será punida por Deus, mas lamentou que o filho tenha cometido o massacre; não muito diferente do que um evangélico conservador diria. Uma figura que podemos condenar do ponto de vista de uma moral secular, mas que não sairá por aí matando ninguém. Brigar com toda uma religião por causa de uma minoria de terroristas pode sair pela culatra: alimentar a divisão cultural e obrigar os muçulmanos a escolher entre sua religião e os valores ocidentais da tolerância e respeito universal; melhor nem perguntar quem sairá ganhando.
Religiões não existem no vácuo, e em cada uma encontraremos muitas versões diferentes. Há grupos cristãos e ateus que pregam violência e terrorismo. O que precisa ser explicado não é tanto a existência de versões insanas de uma religião que propõem a violência, e sim o fato de muitos jovens se sentirem atraídos por essas versões e aderirem a elas. O que acontece na vida deles que faz com que esse caminho destrutivo, e que vai cobrar o preço de suas próprias vidas, pareça atraente?
Variáveis econômicas, sociais e culturais provavelmente se misturam aí. A vida de filhos de imigrantes é não raro marcada pelo desemprego crônico e falta de perspectivas. O generoso Estado assistencialista mantém a todos materialmente seguros, mas espiritualmente miseráveis, sem ambição possível ou possibilidade de progresso. Das leis trabalhistas que dificultam o acesso ao mercado a conjuntos habitacionais segregados que impedem o comércio e o empreendedorismo local, a frustração e a monotonia dão as cartas. A reação violenta ao mundo do qual nunca farão parte aparece como uma saída.
Ao mesmo tempo, a sociedade desses países insiste em não integrar essas comunidades e em não oferecer a eles nenhum caminho a aspirar. A cidadania legal é um passo, mas não basta. No passado, o orgulho nacional oferecia ao imigrante a possibilidade de, abandonando sua velha identidade (muitas vezes esquecendo até sua língua original), fazer parte de uma nova cultura que se apresentava como superiora. Não mais. Os países anfitriões não têm mais certeza de seu próprio valor e insistem em um multiculturalismo que valoriza a todos igualmente, promovendo o tipo de convivência mais perigoso de todos: populações conscientemente diferentes vivendo próximas. O resultado é quase sempre o conflito.
Não há soluções claras. Um ambiente econômico mais livre e favorável aos filhos de imigrantes ajudaria, mas talvez seja pouco. Sem se secar a fonte do terrorismo – jovens frustrados e com raiva – a repressão ao terror jamais dará conta de resolver o problema sozinha.
Será que exemplos melhores podem ajudar? Nesse caso, o Brasil aponta um outro tipo de convivência: que não é multiculturalista (comunidades diferentes vivendo próximas, preservando suas identidades) e nem impõe uma cultura única, excluindo outras. Temos como marca cultural a incorporação e mistura das diferenças no nosso caldo social. Nas raças, miscigenação; nas culturas, sincretismo. Aqui, ainda que a criminalidade corra solta, a violência coletiva – religiosa, étnica ou política – não conquista os corações. Fora de momentos delicados como a Olimpíada, quando tensões de outros países podem se hospedar por aqui, podemos respirar aliviados: as palavras de Manuel Valls (ainda) não se aplicam a nós.