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A Ética Protestante e o Espírito Brasileiro

AS reverberações da revolução de Lutero continuam a ser sentidas mesmo no Brasil, maior nação católica do mundo, mas na qual mais de 20% da população é protestante

RIO DE JANEIRO: o mundo pede hoje é a redescoberta de valores clássicos, pré-cristãos, como a convivência e a contemplação, unidos a uma disposição de amar a todos do catolicismo / Matthew Stockman / Getty Images (Matthew Stockman/Getty Images)
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Da Redação

Publicado em 4 de novembro de 2017 às 08h06.

Última atualização em 4 de novembro de 2017 às 08h48.

Em 2017 celebramos dois centenários. O primeiro e mais comentado é o da Revolução Russa de 1917. Embora o regime a que ela deu a luz esteja ainda fresco na memória, e em alguns rincões cada vez mais isolados da intelectualidade ainda se sonhe com uma reedição do projeto, seu legado pertence ao passado, ao século 20, e lá ficará.

A segunda revolução que comemoramos este ano teve inícios muito menos ambiciosos, querendo apenas corrigir algumas crenças e práticas da sociedade, mas, 500 anos depois, seu legado continua vivo, firme e forte, mudando sociedades para o bem e para o mal. Falo, evidentemente, da Reforma Protestante, que completou 500 anos no dia 31 de outubro. Suas reverberações continuam a ser sentidas mesmo no Brasil, maior nação católica do mundo, mas na qual mais de 20% da população é protestante.

31 de outubro de 1517 foi o dia em que Martinho Lutero publicou suas 95 teses contra a doutrina e a prática da Igreja Católica em sua época. Mal sabia ele do profundo impacto cultural que sua proposta de um cristianismo mais simples teria nas mentes e nas culturas do mundo.

Foi Max Weber quem primeiro tentou explicar o porquê de as nações protestantes serem mais desenvolvidas economicamente. (Cabe notar, aqui, que para ele o verdadeiro protestantismo era o calvinismo, o cristianismo reformado. Ele classificava o luteranismo como uma religião tradicional, o mesmo grupo do catolicismo. Ainda assim, foi Lutero quem inaugurou o processo que permitiria o sucesso também das ideias de Calvino.) Holanda, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos.

Talvez até mais do que um efeito social, o efeito individual da conversão ao protestantismo (e, por mais distorcidas que sejam, as igrejas neopentecostais brasileiras são também um ramo do calvinismo) parece ser justamente o da busca pela superação das próprias dificuldades e conquista do sucesso. Foco no trabalho, progresso moral, rejeição aos prazeres, cabeça no futuro, e confiança de estar entre os escolhidos de Deus. Se tem uma coisa que o brasileiro gosta, é sucesso.

Por outro lado, essa mudança religiosa parece colocar em risco diversos de nossos valores distintivos. A sexualidade está cada vez mais cerceada – note-se que a Globo não pode mostrar nudez feminina com a liberdade de décadas anteriores -, religiões tipicamente brasileiras (por origem ou por adoção) como umbanda, candomblé e espiritismo são perseguidas e uma padrão de sucesso marcadamente norte-americano vai se espalhando: dinheiro, terno e gravata, tudo “clean”, tudo no seu lugar, certinho para a família. Ouvir música gospel no rádio é ter o estranhamento de perceber que cantores e cantoras brasileiros afetam sotaque americano na hora de cantar. Por outro lado, é fácil também encontrar sinais de sincretismo e acomodação, que talvez ponham a perder a vitalidade da ética protestante entre nós. O evangélico de berço é muito similar ao católico…

A Reforma Protestante é responsável por algumas dos mais notáveis conquistas da humanidade. Legou-nos uma cultura que chega forte no século 21, mesmo quando extirpada de seu conteúdo teológico. O que é a mentalidade progressista liberal americana se não um puritanismo sem Jesus? Trabalho e resultado acima de tudo, intensa repressão pessoal, dificuldade de gozar no aqui e agora, a necessidade de se separar e se diferenciar dos demais grupos e raças e a disposição de conquistar o mundo.

A isso, o Brasil, que é católico de berço mas nunca foi muito praticante, apresenta outros valores: o valor da mistura (biológica e cultural) enquanto prática de permanência, a preferência pelo jeitinho criativo ao projeto implacável, a facilidade do prazer sem culpa. Do ponto de vista econômico, isso pode ter um preço. O progresso econômico vem, mas um pouco depois dos outros. Se você não coloca todas as suas energias em crescer o PIB, talvez o PIB cresça um pouco menos.

Mas nem tudo é PIB. A ética protestante cobra um alto preço psicológico e, do ponto de vista da civilização industrial que ela engendrou, ambiental também. O que o mundo pede hoje é a redescoberta de valores clássicos, pré-cristãos, como a convivência e a contemplação, unidos a uma disposição de amar a todos do catolicismo (única versão do cristianismo que soube ser verdadeiramente universal) e saber gozar a vida do corpo. Nesse ponto, talvez a ética brasileira esteja mais preparada para o futuro do que a protestante.

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Em 2017 celebramos dois centenários. O primeiro e mais comentado é o da Revolução Russa de 1917. Embora o regime a que ela deu a luz esteja ainda fresco na memória, e em alguns rincões cada vez mais isolados da intelectualidade ainda se sonhe com uma reedição do projeto, seu legado pertence ao passado, ao século 20, e lá ficará.

A segunda revolução que comemoramos este ano teve inícios muito menos ambiciosos, querendo apenas corrigir algumas crenças e práticas da sociedade, mas, 500 anos depois, seu legado continua vivo, firme e forte, mudando sociedades para o bem e para o mal. Falo, evidentemente, da Reforma Protestante, que completou 500 anos no dia 31 de outubro. Suas reverberações continuam a ser sentidas mesmo no Brasil, maior nação católica do mundo, mas na qual mais de 20% da população é protestante.

31 de outubro de 1517 foi o dia em que Martinho Lutero publicou suas 95 teses contra a doutrina e a prática da Igreja Católica em sua época. Mal sabia ele do profundo impacto cultural que sua proposta de um cristianismo mais simples teria nas mentes e nas culturas do mundo.

Foi Max Weber quem primeiro tentou explicar o porquê de as nações protestantes serem mais desenvolvidas economicamente. (Cabe notar, aqui, que para ele o verdadeiro protestantismo era o calvinismo, o cristianismo reformado. Ele classificava o luteranismo como uma religião tradicional, o mesmo grupo do catolicismo. Ainda assim, foi Lutero quem inaugurou o processo que permitiria o sucesso também das ideias de Calvino.) Holanda, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos.

Talvez até mais do que um efeito social, o efeito individual da conversão ao protestantismo (e, por mais distorcidas que sejam, as igrejas neopentecostais brasileiras são também um ramo do calvinismo) parece ser justamente o da busca pela superação das próprias dificuldades e conquista do sucesso. Foco no trabalho, progresso moral, rejeição aos prazeres, cabeça no futuro, e confiança de estar entre os escolhidos de Deus. Se tem uma coisa que o brasileiro gosta, é sucesso.

Por outro lado, essa mudança religiosa parece colocar em risco diversos de nossos valores distintivos. A sexualidade está cada vez mais cerceada – note-se que a Globo não pode mostrar nudez feminina com a liberdade de décadas anteriores -, religiões tipicamente brasileiras (por origem ou por adoção) como umbanda, candomblé e espiritismo são perseguidas e uma padrão de sucesso marcadamente norte-americano vai se espalhando: dinheiro, terno e gravata, tudo “clean”, tudo no seu lugar, certinho para a família. Ouvir música gospel no rádio é ter o estranhamento de perceber que cantores e cantoras brasileiros afetam sotaque americano na hora de cantar. Por outro lado, é fácil também encontrar sinais de sincretismo e acomodação, que talvez ponham a perder a vitalidade da ética protestante entre nós. O evangélico de berço é muito similar ao católico…

A Reforma Protestante é responsável por algumas dos mais notáveis conquistas da humanidade. Legou-nos uma cultura que chega forte no século 21, mesmo quando extirpada de seu conteúdo teológico. O que é a mentalidade progressista liberal americana se não um puritanismo sem Jesus? Trabalho e resultado acima de tudo, intensa repressão pessoal, dificuldade de gozar no aqui e agora, a necessidade de se separar e se diferenciar dos demais grupos e raças e a disposição de conquistar o mundo.

A isso, o Brasil, que é católico de berço mas nunca foi muito praticante, apresenta outros valores: o valor da mistura (biológica e cultural) enquanto prática de permanência, a preferência pelo jeitinho criativo ao projeto implacável, a facilidade do prazer sem culpa. Do ponto de vista econômico, isso pode ter um preço. O progresso econômico vem, mas um pouco depois dos outros. Se você não coloca todas as suas energias em crescer o PIB, talvez o PIB cresça um pouco menos.

Mas nem tudo é PIB. A ética protestante cobra um alto preço psicológico e, do ponto de vista da civilização industrial que ela engendrou, ambiental também. O que o mundo pede hoje é a redescoberta de valores clássicos, pré-cristãos, como a convivência e a contemplação, unidos a uma disposição de amar a todos do catolicismo (única versão do cristianismo que soube ser verdadeiramente universal) e saber gozar a vida do corpo. Nesse ponto, talvez a ética brasileira esteja mais preparada para o futuro do que a protestante.

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