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Voucher na saúde pública. É possível?

Um olhar atento para a evolução da gestão do SUS nos últimos anos vai revelar que nosso sistema público de saúde não é totalmente verticalizado

Atendimento ao paciente: saúde pública caminha para um modelo pautado em favores parlamentares e decisões judiciai (Getty Images/Divulgação)
Bruno Filardi

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 27 de outubro de 2023 às 16h17.

É algo frequente em meu consultório, só essa semana ocorreu por 3 vezes, pacientes conseguirem na justiça tratamentos oncológicos que lhes são de direito constitucional e foram negados por seus respectivos planos de saúde. Dois deles dependem exclusivamente do SUS e o outro é beneficiário de um péssimo plano de saúde bastante prevalente aqui na região de Ribeirão Preto. Os advogados pediram bloqueio das contas do município e do plano de saúde com transferência do recurso financeiro aos pacientes para que eles tenham a chance de receber um tratamento oncológico de excelência.

Lembrei desses casos quando um amigo pediu para eu escrever sobre a ideia de voucher na área da saúde. Porque foi exatamente isso que ocorreu. Na prática, simplificadamente, regulamentar essa estratégia seria transformar o SUS (que funciona como um plano de saúde) também em uma seguradora. O paciente escolheria onde quer ser tratado e o SUS pagaria as contas. Obviamente, se o SUS fosse eficiente e fornecesse saúde universal conforme a Constituição Federal, provavelmente não estaríamos discutindo o assunto. Mas, além disso, sabemos que a eficiência na gestão e o controle de gastos do Estado brasileiro tende a ser pior que a iniciativa privada. Então, se realmente o Estado quisesse ou tivesse condições financeiras de oferecer uma saúde universal e de qualidade, o modelo de voucher seria um caminho a ser discutido com carinho.

Um olhar atento para a evolução da gestão do SUS nos últimos anos vai revelar que nosso sistema público de saúde não é totalmente verticalizado. Pelo contrário, a maioria dos atendimentos, em especial na alta complexidade, é feito por Santas Casas, hospitais beneficentes e/ou geridos por organizações do terceiro setor. Claro que essas relações são atabalhoadas e obscuras, mas o atendimento SUS, na prática, é oferecido por empresas privadas. Em nada mudaria, portanto, do ponto de vista de “privatização da saúde” a adoção de vouchers. Colocando ainda em uma lente de maior aumento, a relação institucional ordinária (repasse pelo serviço prestado via tabela SUS) foi dando lugar para relações extraordinárias, insustentáveis e não transparentes como hipertrofiar emendas parlamentares ao invés de reajustar a tabela SUS.

O maior serviço de oncologia do país, o Hospital do Amor de Barretos, cresce em número de atendimentos e em unidades ano a ano. Mas suas receitas provenientes da tabela SUS diminuiu de 2021 para 2022 enquanto as emendas parlamentares, sua maior fonte de receita, cresceram 30% no mesmo período. Existe, portanto, um sistema de voucher na área da saúde no Brasil, mas é um “voucher” iliberal e de políticos às instituições específicas. O Estado se acerta diretamente com seus parceiros enquanto a população é governada sem direito de escolha sobre seu tratamento.

É uma utopia, quase um delírio, pensarmos que, na atual composição de nossa classe política, seria possível avançar em pautas mais liberais onde o Estado e seus aliados dariam mais protagonismo ao indivíduo. E, para que possamos avançar em um diálogo em relação a uma estratégia de voucher, há pontos conceituais por onde precisamos começar.

Primeiro deles é a obrigação do Estado em oferecer uma saúde universal como direito de todo cidadão. Esse direito constitucional talvez possa ser revisitado e estabelecermos análises de custo-efetividade para incorporação de tecnologias no SUS, como é feito no sistema de saúde público inglês. Lá estabelece-se um limiar de custo para o benefício da tecnologia em questão. O que pode parecer insensível à nossa cultura, certamente é mais honesto que fingir que temos uma saúde universal enquanto nosso SUS quase inexiste na alta complexidade de qualidade.

Segundo ponto a ser discutido é a eficiência do Estado. Quanto o Estado gasta para tratar a mesma doença com o mesmo tratamento comparado a saúde suplementar? Seria o Estado brasileiro mais eficiente que a iniciativa privada para oferecer o mesmo serviço?

Terceiro: modelo de precificação. O atual modelo fee for service premia o gasto financeiro. Esse modelo é implementado tanto na saúde suplementar quanto na saúde pública. Da mesma forma que a discussão sobre voucher na educação deve levar em consideração a qualidade de ensino (e esse pode ser medido com provas e outros parâmetros), na saúde também é possível usarmos indicadores baseado em desfecho clínico, em valor, premiar a prevenção de doenças, etc.

A saúde pública caminha para um modelo pautado em favores parlamentares e decisões judiciais. A ideia de voucher pode ser uma solução e faz sentido para os adeptos aos pensamentos mais liberais. Para que seja algo minimamente factível para nossa realidade, como um modelo de saúde pública, é necessário evoluirmos na discussão de conceitos mais fundamentais. É preciso evoluir na discussão sobre tecnologias e tratamentos baseados em custo-efetividade, entender as limitações do Estado como administrador de empresas e repactuar um modelo de saúde baseado em valor. Sim, é possível.

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É algo frequente em meu consultório, só essa semana ocorreu por 3 vezes, pacientes conseguirem na justiça tratamentos oncológicos que lhes são de direito constitucional e foram negados por seus respectivos planos de saúde. Dois deles dependem exclusivamente do SUS e o outro é beneficiário de um péssimo plano de saúde bastante prevalente aqui na região de Ribeirão Preto. Os advogados pediram bloqueio das contas do município e do plano de saúde com transferência do recurso financeiro aos pacientes para que eles tenham a chance de receber um tratamento oncológico de excelência.

Lembrei desses casos quando um amigo pediu para eu escrever sobre a ideia de voucher na área da saúde. Porque foi exatamente isso que ocorreu. Na prática, simplificadamente, regulamentar essa estratégia seria transformar o SUS (que funciona como um plano de saúde) também em uma seguradora. O paciente escolheria onde quer ser tratado e o SUS pagaria as contas. Obviamente, se o SUS fosse eficiente e fornecesse saúde universal conforme a Constituição Federal, provavelmente não estaríamos discutindo o assunto. Mas, além disso, sabemos que a eficiência na gestão e o controle de gastos do Estado brasileiro tende a ser pior que a iniciativa privada. Então, se realmente o Estado quisesse ou tivesse condições financeiras de oferecer uma saúde universal e de qualidade, o modelo de voucher seria um caminho a ser discutido com carinho.

Um olhar atento para a evolução da gestão do SUS nos últimos anos vai revelar que nosso sistema público de saúde não é totalmente verticalizado. Pelo contrário, a maioria dos atendimentos, em especial na alta complexidade, é feito por Santas Casas, hospitais beneficentes e/ou geridos por organizações do terceiro setor. Claro que essas relações são atabalhoadas e obscuras, mas o atendimento SUS, na prática, é oferecido por empresas privadas. Em nada mudaria, portanto, do ponto de vista de “privatização da saúde” a adoção de vouchers. Colocando ainda em uma lente de maior aumento, a relação institucional ordinária (repasse pelo serviço prestado via tabela SUS) foi dando lugar para relações extraordinárias, insustentáveis e não transparentes como hipertrofiar emendas parlamentares ao invés de reajustar a tabela SUS.

O maior serviço de oncologia do país, o Hospital do Amor de Barretos, cresce em número de atendimentos e em unidades ano a ano. Mas suas receitas provenientes da tabela SUS diminuiu de 2021 para 2022 enquanto as emendas parlamentares, sua maior fonte de receita, cresceram 30% no mesmo período. Existe, portanto, um sistema de voucher na área da saúde no Brasil, mas é um “voucher” iliberal e de políticos às instituições específicas. O Estado se acerta diretamente com seus parceiros enquanto a população é governada sem direito de escolha sobre seu tratamento.

É uma utopia, quase um delírio, pensarmos que, na atual composição de nossa classe política, seria possível avançar em pautas mais liberais onde o Estado e seus aliados dariam mais protagonismo ao indivíduo. E, para que possamos avançar em um diálogo em relação a uma estratégia de voucher, há pontos conceituais por onde precisamos começar.

Primeiro deles é a obrigação do Estado em oferecer uma saúde universal como direito de todo cidadão. Esse direito constitucional talvez possa ser revisitado e estabelecermos análises de custo-efetividade para incorporação de tecnologias no SUS, como é feito no sistema de saúde público inglês. Lá estabelece-se um limiar de custo para o benefício da tecnologia em questão. O que pode parecer insensível à nossa cultura, certamente é mais honesto que fingir que temos uma saúde universal enquanto nosso SUS quase inexiste na alta complexidade de qualidade.

Segundo ponto a ser discutido é a eficiência do Estado. Quanto o Estado gasta para tratar a mesma doença com o mesmo tratamento comparado a saúde suplementar? Seria o Estado brasileiro mais eficiente que a iniciativa privada para oferecer o mesmo serviço?

Terceiro: modelo de precificação. O atual modelo fee for service premia o gasto financeiro. Esse modelo é implementado tanto na saúde suplementar quanto na saúde pública. Da mesma forma que a discussão sobre voucher na educação deve levar em consideração a qualidade de ensino (e esse pode ser medido com provas e outros parâmetros), na saúde também é possível usarmos indicadores baseado em desfecho clínico, em valor, premiar a prevenção de doenças, etc.

A saúde pública caminha para um modelo pautado em favores parlamentares e decisões judiciais. A ideia de voucher pode ser uma solução e faz sentido para os adeptos aos pensamentos mais liberais. Para que seja algo minimamente factível para nossa realidade, como um modelo de saúde pública, é necessário evoluirmos na discussão de conceitos mais fundamentais. É preciso evoluir na discussão sobre tecnologias e tratamentos baseados em custo-efetividade, entender as limitações do Estado como administrador de empresas e repactuar um modelo de saúde baseado em valor. Sim, é possível.

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