"Vamos privilegiar o interesse público ou o interesse dos políticos?"
Sebastião Ventura defende utilização de verbas de fundos públicos para combate ao coronavírus e vai além: atuais regras resultam em distorções
Publicado em 9 de abril de 2020 às, 15h39.
Última atualização em 9 de abril de 2020 às, 15h52.
“O que vamos privilegiar: o interesse público da nação ou o interesse de caixa dos políticos e das instituições partidárias?”, questiona o advogado especializado em Direito de Estado e conselheiro do Instituto Millenium, Sebastião Ventura, diante do impasse sobre a possibilidade de usar verbas dos fundos eleitoral e partidário para conter impactos do coronavírus. A Justiça Federal de Brasília chegou a bloquear o dinheiro a favor de sua destinação ao combate à doença, mas o Tribunal Regional Federal acolheu o pedido da Advocacia-Geral da União para suspender o bloqueio, alegando uma ameaça à separação dos poderes. Juntos, os fundos somam cerca de R$ 3 bilhões. Ouça a entrevista abaixo!
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O especialista explica que a lei que instituía fundos públicos para financiamento de partidos surgiu em 1965, durante o regime militar. Anos depois, com a reabertura democrática, a legislação reprisou as criações feitas no passado. Na opinião de Ventura, usar dinheiro público para financiamento de partidos é uma “incongruência”, já que tratam-se de entidades de personalidade privada. “Quando pensávamos que a retomada da liberdade democrática iria fazer surgir partidos com conexão com a sociedade, que representassem ideias, que se tornassem importantes na vida da população e no seio político e angariassem recursos das pessoas, que se sentiriam representadas, a democracia seguiu mantendo criações autoritárias. Esse resgate histórico coloca em xeque o próprio viés democrático desses fundos”, ressalta, acreditando que está mais do que na hora de encararmos a questão. “Justamente pela sua baixa representatividade, os partidos não conseguem angariar apoio perante os cidadãos. Espero que esta tragédia que estamos vivendo agora jogue luzes de racionalidade sobre o sistema político”.
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O advogado vai além: para ele, é justamente por causa dessas distorções no sistema político brasileiro que há no Brasil uma manutenção de certos grupos no poder, bem como uma crise de representatividade no país. Ele lembra que a Constituição brasileira reforça que as verbas devem ser destinadas com valores iguais para todos. “A partir do momento que nós temos fundos públicos, que são distribuídos com critérios pouco transparentes, beneficiando geralmente os ‘caciques’ da política, não há igualdade eleitoral. Isso acaba sendo uma forma de perpetuação no sistema, que impede a necessária renovação e o surgimento de novas lideranças, fazendo com que nós fiquemos atravancados perante uma classe política totalmente desconectada com os anseios da sociedade brasileira”.
Decisão deve ser tomada pelo Congresso ou Supremo
Para Ventura, no entanto, é preciso ser cauteloso com medidas impostas por juízes no Brasil. “Não podemos deixar que cada juiz federal que se julgue competente comece a emitir decisões que, ao invés de estimular o ordenamento jurídico, acabem por estabelecer uma perigosa insegurança jurídica. Existem questões que pertencem à competência exclusiva do Congresso Nacional e, somente posteriormente, se acarretarem algum tipo de lesão subsequente à Constituição Federal, ou algum tipo de normatividade jurídica ordinária, poderá sim o poder judiciário, através de seus canais competentes, invadir essa competência. Mas não antes”, explica, acrescentando que tal demanda deveria ser concentrada no Supremo Tribunal Federal (STF).
Previsão de eleições municipais pode dificultar
Ventura acredita ser possível destinar a verba para questões humanitárias, sanitárias e de saúde pública, no entanto, para ele, não há um consenso sobre esta decisão entre a classe política.
“Temos eleições municipais e não me parece que existe uma vontade política majoritária e soberana, de nossas autoridades parlamentares, em abrir mão desse recurso que vai ser absolutamente necessário para campanhas municipais. Esta é a discussão que está em xeque. Eu torço, como cidadão, que nós valorizemos o bem da vida. Porque se o cidadão não vai estar protegido, a própria atividade politica também vai estar prejudicada. Eu espero que haja racionalidade e bom senso e que as pessoas do poder tenham sensibilidade de fazer as melhores escolhas constitucionais”, espera Ventura.