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Uma visita a Bioética

Tendemos a subvalorizar ou não reconhecer de imediato as profundas mudanças estruturais e morais que uma tecnologia é capaz de trazer à humanidade

Ética e ciência: a Bioética se baseia na filosofia, avança pela moral, mas tem função normativa (Getty Images/Getty Images)
Ética e ciência: a Bioética se baseia na filosofia, avança pela moral, mas tem função normativa (Getty Images/Getty Images)

O termo bioética possui duas origens. A mais recente e conhecida vem de um artigo denominado "Bioethics, the Science of Survival" do oncologista e bioquímico americano Van Rensselaer Potter, que constatou haver “duas culturas – ciências e humanidades – que parecem incapazes de falar uma com a outra e, se esta é parte da razão de o futuro da humanidade ser incerto...” e pediu à humanidade para “fabricar uma ponte para o futuro, construindo a disciplina da Bioética como a ponte entre essas duas culturas.” Há pouco mais de 50 anos, o mundo vivia uma grande mudança de paradigmas intelectual e moral. Nossa cultura ocidental colocava à prova diferentes autoridades, questionando inclusive instituições seculares e mais paternalistas (no sentido hipocrático da palavra) como família, governo e igreja. Distorções e injustiças eram muito claras e surgiram movimentos em defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, etc. Assistimos à primavera de Praga e à revolta dos estudantes em Paris. Os Estados Unidos debatiam com veemência a Guerra do Vietnã e o assassinato de Martin Luther King. E nesse contexto de mudanças sociais, novos conhecimentos e suas consequentes tecnologias deixaram os pensadores da época ainda mais reflexivos.  

Tendemos a subvalorizar ou não reconhecer de imediato as profundas mudanças estruturais e morais que uma tecnologia é capaz de trazer à humanidade. A pílula anticoncepcional na década de cinquenta teve grande responsabilidade no processo de emancipação da mulher como figura submissa a uma sociedade mais patriarcal, por exemplo. Nesse contexto, a hemodiálise na década de sessenta, utilizada pela primeira vez em Seattle pelo nefrologista Belding H. Scribner, permitiu a possibilidade de prolongar substancialmente os portadores de insuficiência renal crônica. Entretanto, havia um pequeno número de máquinas e uma comissão começou a escolher quem receberia hemodiálise. Praticamente quem iria sobreviver ou não. Praticamente o título de um belíssimo ensaio da revista Life em 1962: “They decide who lives, who dies - Medical miracle puts moral burden on small committee”.  

Se avanços científicos podem ressignificar nossas relações sociais, quando eles existem às custas de rupturas éticas brutais, nos faz repensar filosoficamente nossa própria existência como espécie. Em 1966, Henry K. Beecher, um anestesiologista americano, publicou o fundamental artigo "Ethics and Clinical Research" no prestigiado New England Journal of Medicine (NEJM). Curiosamente, o mesmo artigo foi recusado por outro periódico de semelhante importância, o JAMA. Esse artigo descreveu 22 estudos científicos nos quais houve indiscutíveis falhas éticas a ponto de se caracterizarem crimes contra a humanidade. Muitos desses estudos foram publicados na própria NEJM e JAMA e conduzidos em centros universitários, instituições públicas e com recursos governamentais. Desde o seguimento sem tratamento de negros com sífilis, tratando apenas metade para observar a evolução da doença – quase uma tortura medieval – até a infusão do vírus causador de hepatite em crianças com retardo mental. Pouco tempo após Nuremberg condenar mais de 20 pessoas por crimes semelhantes. O artigo de Beecher trouxe muito incômodo à sociedade, pois escancarou que violações éticas não eram coisas do passado nem exclusividade do nazismo. É necessária atuação e vigilância constante da sociedade. E mais importante, a bioética não deve se restringir aos pensamentos e deliberações dos cientistas exclusivamente, mas é um problema de toda a sociedade. Basta lembrar que das 23 pessoas condenadas por crimes contra a humanidade, 20 eram médicos e cientistas.  

Aqui cabem parênteses: A segunda origem do termo Bioética é mais antiga e vem de um editorial da revista Kosmos, de 1927. Seu autor o alemão Fritz Jahr (1895 – 1953), filósofo, educador e pastor protestante. Numa analogia ao imperativo categórico de Kant, Fritz Jahr anuncia um imperativo bioético: “Respeitar cada ser vivo por questão de princípio e tratá-lo como tal”. Se Kant formulou seu imperativo categórico baseado na dignidade do ser humano, Fritz Jahr acrescenta à dignidade a compaixão. Foi desvirtuado pelos nazistas ao considerar apenas a raça ariana como pura ou digna. 

Toda essa discussão culminou na publicação, em 1979, dos 4 princípios fundamentais da Bioética por Beauchamp e Childress, que constituem os pilares dessa área fundamental do conhecimento: Beneficência, Não Maleficência, Autonomia e Justiça. Os dois primeiros são de fácil entendimento e substituem o utilitarismo, que dá margem a desvios éticos em prol de um avanço científico. Autonomia é um princípio liberal em sua acepção filosófica e moral. Não me refiro aqui, obviamente, à deturpação do termo “liberal” constantemente empregado no país, mas ao seu sentido histórico e conceitual. E Justiça se refere à equidade, no sentido de uma justiça distributiva e sem distinções de classes sociais, culturas, etnias ou sexo. 

Quero lembrar que os maiores desvios éticos da nossa história, seja no nazismo ou nos experimentos citados acima, vieram ou tiveram a chancela do Estado. Sem demonizá-lo ou querer tratá-lo como um mal, quero alertar para não dar esse tratamento ao avanço científico advindo da iniciativa privada como antiético por essência. Essa ideia equivocada e arraigada em grande parte dos gestores públicos é cotidianamente colocada em contradição sempre que o Estado decide punir a população por ideias protecionistas/nacionalistas que vão contra o desenvolvimento tecnológico e acesso às tecnologias. Para isso se escoram em desculpas de que sacrifícios imediatos devem ser feitos pelo bem maior, pela sociedade. Como se a sociedade não fosse o conjunto dos indivíduos. Assistimos repetidamente violações dos princípios da Justiça e da Autonomia. A sociedade civil deveria se organizar e participar das discussões éticas com maior liberdade e propriedade para dividir e descentralizar o poder do governo sobre as decisões bioéticas e, consequentemente, das políticas de saúde públicas. 

Percebemos então que a Bioética se baseia na filosofia, avança pela moral, mas tem função normativa. É uma aplicação prática da ética. Sempre que alguma ação humana produzir conhecimento e esse for capaz de alterar a vida ou a sociedade, esta ação deverá ser estudada e normatizada sob o alcance da Bioética. Termino com um excerto de Os Irmãos Karamazov, escrito exatos 100 anos antes da publicação de Beauchamp e Childress: “...se o sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale tal preço.” 

P.S.: Este texto foi redigido após um seminário realizado no Insper sobre o tema, a convite de Fernando Schüler.