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Um Judiciário pouco modesto

O aumento irresponsável do subsídio dos ministros do Supremo causa espanto na população e desconecta os integrantes da Corte com a realidade nacional

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institutomillenium

Publicado em 3 de dezembro de 2018 às 00h00.

Última atualização em 13 de dezembro de 2018 às 10h30.

O Brasil é o que tem talher de prata
Ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come
O Brasil gordo na contradição?
– Trecho da canção “A cara do Brasil”, Celso Viáfora / Vicente Barreto

“Modestíssimo” foi o adjetivo usado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski no último mês de agosto para classificar a inclusão, na proposta do orçamento de 2019, de um reajuste de 16,38% no salário dos membros da mais alta Corte do país. O leitor atento ao noticiário bem sabe que no último dia 26 de novembro a “modéstia” se fez realidade: o presidente Michel Temer sancionou o texto que eleva o salário dos ministros de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil.

A Corte está em festa, e a farra é grande, já que o chamado efeito cascata eleva os salários de outras categorias de servidores, isto porque o vencimento dos ministros do STF corresponde ao teto constitucional de todo o funcionalismo público, ou seja, a Constituição brasileira determina que nenhum ocupante de cargo, função e emprego público pode ganhar mais que um ministro do STF, havendo subtetos específicos para municípios, estados e demais poderes. O texto constitucional determina também que os salários de demais membros do Judiciário sejam proporcionais ao salário do STF, gerando um aumento automático no contra-cheque de milhares de magistrados. A matemática é a seguinte: nos órgãos do Poder Judiciário dos Estados, por exemplo, a determinação legal é de que o teto remuneratório seja o valor do salário do cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça, que não pode passar de 90,25% do equivalente ao subsídio pago aos ministros. No Rio de Janeiro, estado cuja calamidade fiscal é conhecida por todos, o teto do Judiciário passará dos atuais R$ 30.471,11 para R$ 35.462,22. O leitor já deve estar imaginando quem vai arcar com o aumento desta despesa, não é mesmo?

O impacto será grande. A Comissão de Assuntos Legislativos do Senado estima um aumento das despesa públicas da União de R$ 4,1 bi anuais, pois além dos aumentos automáticos supracitados  — que dispensam qualquer consideração meritocrática e ignoram o desempenho desses profissionais — muitos servidores de todas as esferas do setor público receberiam mensalmente valores superiores ao teto constitucional não fosse um mecanismo legal chamado “abate-teto”, responsável por cortar automaticamente os valores excedentes ao limite do STF. Salvo auxílios, verbas indenizatórias, salários e pensões por cargo acumulado, o servidor cujo vencimento passa de R$ 33,7 mil tem seu salário cortado para o limite, e com a elevação deste valor a partir de 2019 o desconto na folha de pagamento de quem recebe supersalários será reduzido. No Poder Executivo Federal são 5,7 mil servidores nesta situação, cujo impacto pode chegar a R$ 243,1 milhões nas contas públicas, de acordo com o Ministério do Planejamento. Um servidor cuja remuneração é de R$ 36 mil (portanto acima do teto atual), por exemplo, receberá este valor na integralidade a partir do próximo ano, contribuindo para acentuar ainda mais o desequilíbrio fiscal do país.

O aumento irresponsável do subsídio dos ministros do Supremo causa espanto na população e desconecta os integrantes da Corte com a realidade nacional. Convencidos de que os valores de 2019 representam uma “reposição, e não aumento” — em referência à perda nos vencimentos relacionadas à inflação — os ministros passam a ganhar mais de 39 vezes o salário mínimo brasileiro, previsto para R$ 998 em 2019. Como moeda de troca, o ministro Luiz Fux desafiou a inteligência dos cidadãos ao revogar liminares de 2014, de sua própria autoria, que determinavam o pagamento do auxílio-moradia de R$ 4.377 a integrantes de carreira jurídica. O que desafia a lógica é, por que o auxílio-moradia, agora considerado indevido, foi pago durante tanto tempo? Em 2017, o benefício para juízes e procuradores custou R$ 399 milhões aos cofres públicos  — valor que somente pode ser considerado irrisório se comparado aos gastos totais do Judiciário no mesmo ano: R$ 90,8 bilhões. O fim do auxílio-moradia é obviamente um ponto positivo para sociedade, mesmo tendo sido estabelecido por pura conveniência. No entanto, a indignação da sociedade civil só tende a crescer quando a conta é feita na ponta do lápis: de acordo com dados obtidos pelo “Estadão/Broadcast”, o saldo do reajuste considerando o fim do auxílio-moradia resulta em uma despesa de R$ 601 milhões. Valor nada considerável se pensarmos que, como pontuou o professor de Economia Samuel Pessôa em entrevista ao Estadão no último domingo (2), os gastos brasileiros com o Judiciário chegaram a 2% do PIB, número quatro vezes maior do que a média de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

É certo que qualquer categoria profissional pode se organizar para pressionar por ajustes salariais. No caso brasileiro, porém, os números comparados à justiça de outros países alerta para a ineficiência com a qual o dinheiro público é gasto. Em 2016, o Judiciário brasileiro custou 3,5 vezes mais que o da Alemanha em relação ao tamanho do PIB. A comparação com os EUA também é gritante: são nove vezes o gasto dos norte-americanos. Em média, naquele ano, os 16,2 mil juízes que estavam em atividade no Brasil ganharam R$ 46 mil mensais. O leitor mais atento vai observar: “Mas esse valor não está acima do limite permitido de acordo com o salário do STF?”. Outra ingrata surpresa: os chamados penduricalhos, uma série de benefícios que escapam à regra do teto, confirmam a estrutura perversa dos privilégios de quem usa toga para trabalhar. São eles o auxílio-alimentação, auxílio-saúde, o auxílio-natalidade e diversas outras “ajudas de custo”. Seria irônico, não fosse trágico, que o Judiciário brasileiro esteja no centro das injustiças sociais do país: em pouco mais de quatro anos, o salário dos ministros do STF foi de pouco mais de R$ 29 mil para, em 2019, ser fixado em R$ 39,2 mil. Como bem lembrou o economista Gil Castello Branco em entrevista ao Instituto Millenium, em agosto, “o dinheiro não nasce dentro do STF, quem paga a conta somos nós”.

Não há magica a ser feita para pagar essa conta. Um dos acertos do governo Temer, a Emenda Constitucional 95 proíbe o aumento de gastos públicos acima da inflação – exigindo que a cascata do funcionalismo em 2019 seja custeada com o remanejamento de recursos — e o cobertor é curto. No caso dos ministros do STF, a previsão é de que o impacto do seus salários no orçamento do tribunal seja inicialmente de R$ 2,7 milhões, atingindo a verba da TV Justiça. Em outros Poderes e instâncias, o dinheiro público necessário para pagar o aumento generalizado pode sair das verbas de custeio de serviços. É o cidadão pagando mais por menos. As prioridades parecem estar invertidas.

Cabe ao cidadão a fiscalização constante. Primeiramente, vale lembrar que apesar da conivência de Temer com a questão (a aprovação do aumento surgiu como uma espécie de troca-troca pelo parecer positivo do STF à constitucionalidade do indulto de Natal editado em 2017), os projetos de reajustes salariais são votados tanto na Câmara quanto no Senado, e é nessa hora que o eleitor deve estar atento ao comportamento de quem por ele foi eleito. Por mais que seja da cultura política a “legislação em causa própria”, é importante avaliar o discurso dos parlamentares, que, diante de um rombo fiscal de R$ 139 bilhões previsto para 2019, devem votar a favor da responsabilidade com o dinheiro público, representando de fato os interesses do cidadão. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é um mecanismo importante do Direito para questionar leis e atos normativos estabelecidos por diferentes órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça, mas para que esse instrumento possa ser utilizado por partidos, eles precisam estar representados no Congresso Nacional. É aí que está o poder do cidadão. Nos últimos anos, a sociedade civil tem reagido de forma mais eficaz aos desmandos do poder. Nas redes sociais, é possível encontrar todo tipo de abaixo-assinados contrários a projetos de lei e decisões arbitrárias, mas para que a representatividade seja fortalecida não basta a participação esporádica com assinaturas. A democracia exige a participação firme, e nada modesta, do cidadão.

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O Brasil é o que tem talher de prata
Ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come
O Brasil gordo na contradição?
– Trecho da canção “A cara do Brasil”, Celso Viáfora / Vicente Barreto

“Modestíssimo” foi o adjetivo usado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski no último mês de agosto para classificar a inclusão, na proposta do orçamento de 2019, de um reajuste de 16,38% no salário dos membros da mais alta Corte do país. O leitor atento ao noticiário bem sabe que no último dia 26 de novembro a “modéstia” se fez realidade: o presidente Michel Temer sancionou o texto que eleva o salário dos ministros de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil.

A Corte está em festa, e a farra é grande, já que o chamado efeito cascata eleva os salários de outras categorias de servidores, isto porque o vencimento dos ministros do STF corresponde ao teto constitucional de todo o funcionalismo público, ou seja, a Constituição brasileira determina que nenhum ocupante de cargo, função e emprego público pode ganhar mais que um ministro do STF, havendo subtetos específicos para municípios, estados e demais poderes. O texto constitucional determina também que os salários de demais membros do Judiciário sejam proporcionais ao salário do STF, gerando um aumento automático no contra-cheque de milhares de magistrados. A matemática é a seguinte: nos órgãos do Poder Judiciário dos Estados, por exemplo, a determinação legal é de que o teto remuneratório seja o valor do salário do cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça, que não pode passar de 90,25% do equivalente ao subsídio pago aos ministros. No Rio de Janeiro, estado cuja calamidade fiscal é conhecida por todos, o teto do Judiciário passará dos atuais R$ 30.471,11 para R$ 35.462,22. O leitor já deve estar imaginando quem vai arcar com o aumento desta despesa, não é mesmo?

O impacto será grande. A Comissão de Assuntos Legislativos do Senado estima um aumento das despesa públicas da União de R$ 4,1 bi anuais, pois além dos aumentos automáticos supracitados  — que dispensam qualquer consideração meritocrática e ignoram o desempenho desses profissionais — muitos servidores de todas as esferas do setor público receberiam mensalmente valores superiores ao teto constitucional não fosse um mecanismo legal chamado “abate-teto”, responsável por cortar automaticamente os valores excedentes ao limite do STF. Salvo auxílios, verbas indenizatórias, salários e pensões por cargo acumulado, o servidor cujo vencimento passa de R$ 33,7 mil tem seu salário cortado para o limite, e com a elevação deste valor a partir de 2019 o desconto na folha de pagamento de quem recebe supersalários será reduzido. No Poder Executivo Federal são 5,7 mil servidores nesta situação, cujo impacto pode chegar a R$ 243,1 milhões nas contas públicas, de acordo com o Ministério do Planejamento. Um servidor cuja remuneração é de R$ 36 mil (portanto acima do teto atual), por exemplo, receberá este valor na integralidade a partir do próximo ano, contribuindo para acentuar ainda mais o desequilíbrio fiscal do país.

O aumento irresponsável do subsídio dos ministros do Supremo causa espanto na população e desconecta os integrantes da Corte com a realidade nacional. Convencidos de que os valores de 2019 representam uma “reposição, e não aumento” — em referência à perda nos vencimentos relacionadas à inflação — os ministros passam a ganhar mais de 39 vezes o salário mínimo brasileiro, previsto para R$ 998 em 2019. Como moeda de troca, o ministro Luiz Fux desafiou a inteligência dos cidadãos ao revogar liminares de 2014, de sua própria autoria, que determinavam o pagamento do auxílio-moradia de R$ 4.377 a integrantes de carreira jurídica. O que desafia a lógica é, por que o auxílio-moradia, agora considerado indevido, foi pago durante tanto tempo? Em 2017, o benefício para juízes e procuradores custou R$ 399 milhões aos cofres públicos  — valor que somente pode ser considerado irrisório se comparado aos gastos totais do Judiciário no mesmo ano: R$ 90,8 bilhões. O fim do auxílio-moradia é obviamente um ponto positivo para sociedade, mesmo tendo sido estabelecido por pura conveniência. No entanto, a indignação da sociedade civil só tende a crescer quando a conta é feita na ponta do lápis: de acordo com dados obtidos pelo “Estadão/Broadcast”, o saldo do reajuste considerando o fim do auxílio-moradia resulta em uma despesa de R$ 601 milhões. Valor nada considerável se pensarmos que, como pontuou o professor de Economia Samuel Pessôa em entrevista ao Estadão no último domingo (2), os gastos brasileiros com o Judiciário chegaram a 2% do PIB, número quatro vezes maior do que a média de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

É certo que qualquer categoria profissional pode se organizar para pressionar por ajustes salariais. No caso brasileiro, porém, os números comparados à justiça de outros países alerta para a ineficiência com a qual o dinheiro público é gasto. Em 2016, o Judiciário brasileiro custou 3,5 vezes mais que o da Alemanha em relação ao tamanho do PIB. A comparação com os EUA também é gritante: são nove vezes o gasto dos norte-americanos. Em média, naquele ano, os 16,2 mil juízes que estavam em atividade no Brasil ganharam R$ 46 mil mensais. O leitor mais atento vai observar: “Mas esse valor não está acima do limite permitido de acordo com o salário do STF?”. Outra ingrata surpresa: os chamados penduricalhos, uma série de benefícios que escapam à regra do teto, confirmam a estrutura perversa dos privilégios de quem usa toga para trabalhar. São eles o auxílio-alimentação, auxílio-saúde, o auxílio-natalidade e diversas outras “ajudas de custo”. Seria irônico, não fosse trágico, que o Judiciário brasileiro esteja no centro das injustiças sociais do país: em pouco mais de quatro anos, o salário dos ministros do STF foi de pouco mais de R$ 29 mil para, em 2019, ser fixado em R$ 39,2 mil. Como bem lembrou o economista Gil Castello Branco em entrevista ao Instituto Millenium, em agosto, “o dinheiro não nasce dentro do STF, quem paga a conta somos nós”.

Não há magica a ser feita para pagar essa conta. Um dos acertos do governo Temer, a Emenda Constitucional 95 proíbe o aumento de gastos públicos acima da inflação – exigindo que a cascata do funcionalismo em 2019 seja custeada com o remanejamento de recursos — e o cobertor é curto. No caso dos ministros do STF, a previsão é de que o impacto do seus salários no orçamento do tribunal seja inicialmente de R$ 2,7 milhões, atingindo a verba da TV Justiça. Em outros Poderes e instâncias, o dinheiro público necessário para pagar o aumento generalizado pode sair das verbas de custeio de serviços. É o cidadão pagando mais por menos. As prioridades parecem estar invertidas.

Cabe ao cidadão a fiscalização constante. Primeiramente, vale lembrar que apesar da conivência de Temer com a questão (a aprovação do aumento surgiu como uma espécie de troca-troca pelo parecer positivo do STF à constitucionalidade do indulto de Natal editado em 2017), os projetos de reajustes salariais são votados tanto na Câmara quanto no Senado, e é nessa hora que o eleitor deve estar atento ao comportamento de quem por ele foi eleito. Por mais que seja da cultura política a “legislação em causa própria”, é importante avaliar o discurso dos parlamentares, que, diante de um rombo fiscal de R$ 139 bilhões previsto para 2019, devem votar a favor da responsabilidade com o dinheiro público, representando de fato os interesses do cidadão. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é um mecanismo importante do Direito para questionar leis e atos normativos estabelecidos por diferentes órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça, mas para que esse instrumento possa ser utilizado por partidos, eles precisam estar representados no Congresso Nacional. É aí que está o poder do cidadão. Nos últimos anos, a sociedade civil tem reagido de forma mais eficaz aos desmandos do poder. Nas redes sociais, é possível encontrar todo tipo de abaixo-assinados contrários a projetos de lei e decisões arbitrárias, mas para que a representatividade seja fortalecida não basta a participação esporádica com assinaturas. A democracia exige a participação firme, e nada modesta, do cidadão.

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