Exame.com
Continua após a publicidade

Um homem, um décimo de voto

Para além de narrativas e manchetes, a sub-representação política dos estados do Sul e Sudeste é real e deve ser revista urgentemente

Como um princípio tão básico da democracia representativa como o voto paritário - 1 homem, 1 voto - poderia ser absolutamente desfigurado? (MirageC/Getty Images)
Como um princípio tão básico da democracia representativa como o voto paritário - 1 homem, 1 voto - poderia ser absolutamente desfigurado? (MirageC/Getty Images)

*Por André Bolini 

É surpreendente a singular capacidade do Brasil de tornar conceitos simples e universais em regras deturpadas e ininteligíveis - seja em nosso caótico sistema tributário ou em nosso distorcido sistema político, por exemplo. Como um princípio tão básico da democracia representativa como o voto paritário - 1 homem, 1 voto - poderia ser absolutamente desfigurado? Saiba, caro amigo leitor, que, a depender de sua localização geográfica, seu voto pode valer 11x mais ou menos do que o voto de um compatriota. Confuso e indignado? Pois, acalme-se, que lhe explico a seguir - a começar pelo começo. 

A democracia representativa nem sempre assegurou igual representação ao eleitorado: houve época em que apenas brancos votavam, ou apenas homens - ou, ainda, somente aqueles com renda superior a 100 mil réis. Com o passar do tempo, enfim, as democracias liberais ocidentais caminharam para garantir igualdade no voto: seja você milionário ou miserável; seja preto, amarelo, vermelho ou branco; seja homem ou mulher - o peso do voto de cada um será o mesmo. Este consagrou-se como o princípio “um homem, um voto”, conforme, inclusive, estipula o artigo 14 da Constituição Federal de 1988 - o voto de igual valor para todos. 

Seguindo a representatividade de voto com igual valor para todos, contudo, surge natural prevalência de representantes oriundos dos centros mais populosos - uma vez que, se um único estado do país concentra 90% da população e esse país tem, ao todo, 100 vagas no parlamento, haverá 90 parlamentares do tal estado populoso. Posto isso, para evitar que estados menos povoados fossem de alguma forma prejudicados, o Poder Legislativo foi dividido em duas casas: uma “casa do povo” e uma “casa dos estados” - a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, respectivamente. Com isso, se na “casa do povo” os estados mais populosos têm mais representantes seguindo a proporção exata da população, na “casa dos estados”, todos os estados - do mais ao menos habitado - têm exatamente o mesmo peso e a mesma voz com igual número de senadores. É o que se estabelece nos artigos 45 e 46 da CF/88. 

Nasce, todavia, uma distorção: em espírito totalmente contrário ao voto de valor igual para todos, o §1º do artigo 45 manda às favas o sufrágio paritário ao impor piso (mínimo) de 8 Deputados Federais por estado e teto (máximo) de 70 Deputados. Com 513 vagas a serem preenchidas, São Paulo pode ter - no máximo - 13,6% de representação na Câmara dos Deputados (equivalente a 70 Deputados Federais), apesar de abrigar 21,8% de toda a população brasileira. Roraima, por outro lado, tem 1,5% dos representantes da “casa do povo” enquanto abriga - efetivamente - 0,3% da população. Consequentemente, o voto paulista vale um décimo do voto roraimense: enquanto São Paulo precisa juntar 313 mil eleitores para eleger um Deputado, Roraima precisa de apenas 37 mil. 

Como resultante dessas distorções representativas, são explícitos os efeitos sobre a alocação de recursos no orçamento público e distribuição da arrecadação total entre os entes federados - por vezes, ainda, com direcionamento de verba orientada à perpetuação de oligarquias locais no poder em detrimento de atenção às reais necessidades do povo. E, obviamente, apesar de abrigar maior poder econômico, estados mais populosos também enfrentam uma série de problemas comuns a grandes centros urbanos, que - da mesma forma - necessitam de recursos para serem enfrentados; como a falta de regularização de moradias, a superlotação de infraestruturas de transporte, a deficiência de saneamento básico e até mesmo a falta de assistência a dependentes químicos e moradores de rua. O fato é que o Brasil é um país pobre, com dificuldades sociais nos seus centros urbanos e no seu interior; no Sul ou no Norte; e não há, por isso, particularidade regional suficiente a justificar grave sub-representação política de um brasileiro em face de outro. 

Note-se que a distorção da representatividade política de cidadãos de regiões diferentes não é exclusividade nacional: dentre 40 democracias do mundo, apenas 3 respeitam perfeitamente o princípio “um homem, um voto”. É comum que centros urbanos mais populosos sejam sub-representados no parlamento ante o peso político de regiões interioranas. O que gera preocupação é o grau desse desequilíbrio no peso de cada eleitor: enquanto países desenvolvidos apresentam índice de desproporcionalidade distrital de 1% a 3%, o Brasil destaca-se com 9%. Onde, afinal, está a linha para definir o limite razoável da desvalorização do peso do voto de Maria em face do peso do voto de João? 

A crise de representatividade política que vivemos não caiu dos céus: é fruto de décadas de rearranjos planejados e tratamentos diferenciados para beneficiar elites políticas locais em detrimento do cidadão comum. Já cabe ao amigo leitor malícia suficiente para distinguir o discurso de combate às desigualdades regionais do efetivo favorecimento de grupos políticos tradicionais e patrimonialistas - quiçá verdadeiras dinastias - protegidos por distorções eleitorais constitucionalizadas. É urgente Proposta de Emenda à Constituição para retirar o piso e o teto de representantes na Câmara dos Deputados, com automática revisão por Lei Complementar, a cada censo produzido, da correta divisão de vagas do parlamento em proporção à população de cada estado. Uma democracia saudável, afinal, clama pelo respeito ao indivíduo - a começar pelo valor de seu voto. 

*André Bolini é formado em Administração de Empresas (FGV-SP) e bacharel em Direito (USJT). É aluno do MBA Executivo em Corporate Finance (FGV) e do MBA Executivo de Agronegócios (USP/Esalq). Tem experiência como analista de crédito corporativo - atualmente focado no setor sucroalcooleiro.