Um governo digital em que as pessoas possam confiar ou que devam temer?
Tal como o ‘pix’, do Banco Central, o portal do governo brasileiro se tornou um aliado da cidadania
Colunista - Instituto Millenium
Publicado em 23 de janeiro de 2024 às 13h05.
Em 2019, a administração federal brasileira acelerou a implantação do chamado governo digital e surgiu o “gov.br”. Tal como o ‘pix’, do Banco Central, o portal do governo brasileiro se tornou um aliado da cidadania, facilitando o acesso dos pagadores de impostos a alguns serviços.
É bom alertar: a ideia de um governo ágil, é claro, não pode ser apenas planejada e implementada como uma solução tecnológica. O otimismo com a tecnologia é condição necessária, mas não suficiente para a felicidade e a prosperidade dos indivíduos. Em caso de dúvida, lembre-se do aparato repressor implantado pela República Popular da China com sua ditadura digital sobre a vida de seus cidadãos ou dos diversos exemplos oriundos da história em que a tecnologia foi usada sem qualquer consideração ética (o mais famoso exemplo talvez sejam os campos de concentração nazistas).
O progresso não ocorre em um vácuo ético. Nem é imune às paixões humanas. Não existe isto de um ‘governo dos homens da ciência’ ou ‘governo dos sábios’ que garanta um progresso que a todos agrade. Nem engenharia, nem filosofia, nem qualquer outro campo do estudo nos garante salvo conduto para o uso da tecnologia. É necessário sempre relembrar a importância de se escolher instituições que possibilitem aos membros da sociedade as maiores possibilidades em sua busca da felicidade.
Tenho sempre falado da importância de se superar a lerdeza dos governos (a hesitocracia), o que não quer dizer que desejamos que estes acelerem seu controle sobre a vida das pessoas. É pertinente, pois, perguntar: será que governos ágeis são mais comuns em países com regimes abertos? Obviamente, um detalhamento do tema exige um estudo mais profundo, mas podemos ter alguma intuição com base em dados.
Para este exercício, escolhi o índice de governança digital, ou melhor, e-governance, medido bianualmente pela Organização das Nações Unidas (ONU) e o índice de liberdade econômica calculado pelo Fraser Institute, um think tank canadense. O indicador de governança digital, publicado em 2022, usa dados coletados de surveys aplicados em 2021. Já o índice de liberdade foi medido em 2021, dizendo respeito a 2019. Deste modo, a medição da liberdade econômica é ligeiramente anterior à do indicador de governança digital.
O gráfico abaixo mostra a correlação entre eles.
Note que, como são rankings, quanto mais próximo da origem um país está, mais bem colocado está nos dois indicadores. Por exemplo, Singapura (SGP) e Nova Zelândia (NZL) são países bem colocados em ambos os critérios. Já o Iêmen (YMN) e a Síria (SYR) são pessimamente classificados. O leitor observará que a maioria dos países bem colocados em ambos os indicadores podem ser considerados como democracias liberais.
O Brasil (BRA) está em uma posição peculiar: relativamente bem na governança digital (49º), mas com desempenho sofrível em liberdade econômica (90º), próximo de países como China, Oman, Turquia e Rússia, que, aliás, não são exatamente democracias de facto.
A China, aliás, é a 43ª no quesito de governança digital. Os casos da China continental e da República da China (conhecida como Taiwan) é um exemplo de como a governança digital pode ser usada para atrofiar ou aprofundar a democracia e a pandemia mostrou a diferença nas abordagens dos dois governos (na minha opinião, Taiwan pode ser considerada um caso de sucesso neste aspecto ). Em ambos, o combate à pandemia exigiu um aumento temporário da interferência na vida privada das pessoas, mas, no caso da China socialista, este aumento parece ter se tornado permanente.
Claro que a correlação positiva não implica causalidade, mas ela me faz pensar sobre os caminhos que a sociedade brasileira escolheu para si. A liberdade econômica parece-me estancada, quando não caluniada em discursos rasos de alguns políticos. Por outro lado, a administração pública parece ter entendido que a sociedade ganha mais com um governo digital.
O que não vejo claramente, nos pronunciamentos de nossas autoridades, é se os três poderes querem um governo ágil como o da República Popular da China, com seus traços autoritários, ou um que se espelhe mais na República da China (Taiwan), com uma visão mais pró-mercado no qual o governo digital existe para promover uma sociedade mais livre e, portanto, próspera. E esta, leitor, não é uma pergunta de interesse meramente acadêmico.
Em 2019, a administração federal brasileira acelerou a implantação do chamado governo digital e surgiu o “gov.br”. Tal como o ‘pix’, do Banco Central, o portal do governo brasileiro se tornou um aliado da cidadania, facilitando o acesso dos pagadores de impostos a alguns serviços.
É bom alertar: a ideia de um governo ágil, é claro, não pode ser apenas planejada e implementada como uma solução tecnológica. O otimismo com a tecnologia é condição necessária, mas não suficiente para a felicidade e a prosperidade dos indivíduos. Em caso de dúvida, lembre-se do aparato repressor implantado pela República Popular da China com sua ditadura digital sobre a vida de seus cidadãos ou dos diversos exemplos oriundos da história em que a tecnologia foi usada sem qualquer consideração ética (o mais famoso exemplo talvez sejam os campos de concentração nazistas).
O progresso não ocorre em um vácuo ético. Nem é imune às paixões humanas. Não existe isto de um ‘governo dos homens da ciência’ ou ‘governo dos sábios’ que garanta um progresso que a todos agrade. Nem engenharia, nem filosofia, nem qualquer outro campo do estudo nos garante salvo conduto para o uso da tecnologia. É necessário sempre relembrar a importância de se escolher instituições que possibilitem aos membros da sociedade as maiores possibilidades em sua busca da felicidade.
Tenho sempre falado da importância de se superar a lerdeza dos governos (a hesitocracia), o que não quer dizer que desejamos que estes acelerem seu controle sobre a vida das pessoas. É pertinente, pois, perguntar: será que governos ágeis são mais comuns em países com regimes abertos? Obviamente, um detalhamento do tema exige um estudo mais profundo, mas podemos ter alguma intuição com base em dados.
Para este exercício, escolhi o índice de governança digital, ou melhor, e-governance, medido bianualmente pela Organização das Nações Unidas (ONU) e o índice de liberdade econômica calculado pelo Fraser Institute, um think tank canadense. O indicador de governança digital, publicado em 2022, usa dados coletados de surveys aplicados em 2021. Já o índice de liberdade foi medido em 2021, dizendo respeito a 2019. Deste modo, a medição da liberdade econômica é ligeiramente anterior à do indicador de governança digital.
O gráfico abaixo mostra a correlação entre eles.
Note que, como são rankings, quanto mais próximo da origem um país está, mais bem colocado está nos dois indicadores. Por exemplo, Singapura (SGP) e Nova Zelândia (NZL) são países bem colocados em ambos os critérios. Já o Iêmen (YMN) e a Síria (SYR) são pessimamente classificados. O leitor observará que a maioria dos países bem colocados em ambos os indicadores podem ser considerados como democracias liberais.
O Brasil (BRA) está em uma posição peculiar: relativamente bem na governança digital (49º), mas com desempenho sofrível em liberdade econômica (90º), próximo de países como China, Oman, Turquia e Rússia, que, aliás, não são exatamente democracias de facto.
A China, aliás, é a 43ª no quesito de governança digital. Os casos da China continental e da República da China (conhecida como Taiwan) é um exemplo de como a governança digital pode ser usada para atrofiar ou aprofundar a democracia e a pandemia mostrou a diferença nas abordagens dos dois governos (na minha opinião, Taiwan pode ser considerada um caso de sucesso neste aspecto ). Em ambos, o combate à pandemia exigiu um aumento temporário da interferência na vida privada das pessoas, mas, no caso da China socialista, este aumento parece ter se tornado permanente.
Claro que a correlação positiva não implica causalidade, mas ela me faz pensar sobre os caminhos que a sociedade brasileira escolheu para si. A liberdade econômica parece-me estancada, quando não caluniada em discursos rasos de alguns políticos. Por outro lado, a administração pública parece ter entendido que a sociedade ganha mais com um governo digital.
O que não vejo claramente, nos pronunciamentos de nossas autoridades, é se os três poderes querem um governo ágil como o da República Popular da China, com seus traços autoritários, ou um que se espelhe mais na República da China (Taiwan), com uma visão mais pró-mercado no qual o governo digital existe para promover uma sociedade mais livre e, portanto, próspera. E esta, leitor, não é uma pergunta de interesse meramente acadêmico.