Roberta Kaufmann rebate artigo de Míriam Leitão
Em coluna no “O Globo” em 07/03/2010, Miriam Leitão comentou a visita de Hillary Clinton à Universidade Zumbi dos Palmares e criticou o combate às ações contra cotas raciais no Brasil. Roberta Kaufmann, colaboradora do Instituto Millenium, respondeu ao artigo no blog No Race Br: “Caros: Vou me dar ao trabalho de comentar o artigo abaixo. Confiram: Destruir a obra É a temporada. Tempo de sofismas e argumentos tortos. Tempo […] Leia mais
Da Redação
Publicado em 9 de março de 2010 às 13h18.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às 12h11.
Em coluna no “O Globo” em 07/03/2010, Miriam Leitão comentou a visita de Hillary Clinton à Universidade Zumbi dos Palmares e criticou o combate às ações contra cotas raciais no Brasil. Roberta Kaufmann, colaboradora do Instituto Millenium, respondeu ao artigo no blog No Race Br:
“Caros:
Vou me dar ao trabalho de comentar o artigo abaixo.
Confiram:
Destruir a obra
É a temporada. Tempo de sofismas e argumentos tortos. Tempo das mesmices repetidas com ares de descobertas recentes. Hora de escapar do debate sobre a questão racial brasileira. Não precisava ser assim. Podia ser um tempo de avanços. Mas os que negam o racismo brasileiro preferem esse cerco à inteligência, ao óbvio, ao progresso.
Num ambiente negacionista, foi um alívio ouvir as explicações simples e diretas da secretária de Estado americana Hillary Clinton na Faculdade Zumbi dos Palmares, onde escolheu debater com estudantes. Hillary defendeu as ações afirmativas dizendo que, com elas, os EUA estão deixando para trás os vestígios da escravidão:
— Temos feito um grande progresso com as ações afirmativas em aumentar as oportunidades na educação, no emprego para os afro-americanos. Elas são o reconhecimento de que as barreiras históricas criam um funil que impede o acesso do grupo discriminado a níveis superiores de educação. É preciso alargar a entrada e deixar mais gente entrar. O talento é universal, mas as oportunidades, não. O acesso na universidade não é, no entanto, a garantia da graduação.
Hillary contou que, como professora de Direito, percebeu que muitos alunos que entraram por ação afirmativa tiveram dificuldades maiores pelas falhas da educação anterior. Ela se dedicou a esses alunos no sistema tutorial:— Simplesmente não podemos aceitar os estudantes na universidade para deixar que eles falhem. Eles têm que ser ajudados.
O sistema americano é diferente do nosso, mas discriminação é parecida em qualquer país do mundo. Ela barra com obstáculos sutis ou explícitos, negados ou assumidos, a ascensão de grupos discriminados por qualquer motivo, racismo, sexismo, ou outras intolerâncias. Lá, eles não têm cotas, não têm vestibular; o sistema, como se sabe, é o de application, o de se candidatar a uma vaga apresentando suas credenciais escolares. Ao avaliar quem entra, as escolas dão pontuação maior a quem vem de um grupo discriminado. Cada universidade tem um critério, um método e uma meta diferente, mas todas buscam um quadro de alunos com diversidade. Os alunos com menos chance de estar lá têm preferência nas bolsas para as caríssimas universidades privadas americanas.
— Estou muito orgulhosa das conquistas dos últimos 50 anos do movimento dos direitos civis, pelos que lutaram como Martin Luther King e outros, mas não posso dizer que o meu país não tem racismo, não tem sexismo — disse a mulher que comanda a mais poderosa diplomacia do mundo e é chefiada por um negro, que preside o maior país do mundo. Ela não vê a sua ascensão, nem a do presidente Obama, como provas de que não há barreiras para negros e mulheres.
Essa sinceridade é encantadora porque é rara no Brasil. Esse reconhecimento da existência do problema, e de que ele é vencido por ações concretas de políticas públicas e de empresas, dá esperança.
Comentário (por Roberta Fragoso Kaufmann):
Inicialmente, é preciso esclarecer: nos Estados Unidos o racismo foi institucionalizado como política de governo e de Estado por mais de 100 anos. Até 1967 era simplesmente proibido qualquer casamento entre as raças. Em 1953 ainda havia decisões judiciais que proibiam negros e brancos de conviverem no mesmo espaço físico. A sociedade como um todo acreditava que era correto discriminar, incentivada pelo fato de que a própria Suprema Corte abalizava as ações da Ku Klux Klan, ao dizer que eles praticavam liberdade de expressão.
Com efeito, apesar de ser tão bonito o que Hillary Clinton afirmou em seu discurso, o partido Democratas nada fez em termos de reparação ou de inclusão para os negros. A Lei dos Direitos Civis (na presidência de Lyndon Johnson), de 1965, apenas proibiu a discriminação com base na cor. A política implementada foi neutra. Coube a um Republicano, racista e conservador implementar a política de cotas para negros nos EUA: Richard Nixon, com o plano Filadélfia, em 1969. E isso só faz sentido se analisarmos o contexto que precedeu a implementação das cotas: iminência de Guerra Civil, após o assassinato de Martin Luther King (1968), o qual jamais defendeu políticas de cotas baseadas na cor da pele, mas sim para os pobres.
É óbvio que os EUA são um país extremamente racista, até hoje. E este racismo é consequência da política de Estado implementada por mais de um século naquele país. E mesmo sendo um país racista, COTAS RACIAIS JAMAIS FORAM CONSIDERADAS CONSTITUCIONAIS EM MATÉRIA DE EDUCAÇÃO. Atualmente, a cor da pele nem sequer pode ser um critério a ser considerado no âmbito educacional (caso Parents vs. Seattle, 2007).
No Brasil, ninguém discorda da existência de preconceito e de discriminação contra os negros, bem como é inegável a existência de preconceito e de discriminação em relação a homossexuais e nordestinos. Mas isto não quer dizer cotas para todas as minorias, ou que sejamos um país racista. Ou mesmo que exista um pensamento nacional voltado para a destruição da minoria segmentada. Aqui, os direitos não são segregados com base na cor da pele, mas sim consequências da má distribuição de renda. Os nossos valores (samba, chorinho, molejo, futebol) são antes de tudo valores pan-brasileiros, ou seja, congregam negros e brancos dentro da mesma cultura, em vez de culturas segregadas, como nos EUA.
Continuação do artigo:
No Brasil, o esforço focado nos negros é chamado de discriminação. E os brancos pobres? Perguntam. Eles estão também nas ações afirmativas, e nas cotas, mas o curioso é que só se lembre dos brancos pobres no momento em que se fala em alguma política favorável a pretos e pardos.
É temporada da coleção de argumentos velhos que reaparecem para evitar que o Brasil faça o que sugeriu Joaquim Nabuco, morto há 100 anos, em frase memorável: “Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra.”
Diante de qualquer proposta para reduzir as desigualdades raciais, principal obra da escravidão, aparece alguém para declamar: “Todos são iguais perante a lei.” E são. Mas o tratamento diferenciado aos discriminados existe exatamente para igualar oportunidades e garantir o princípio constitucional.
O senador Demóstenes foi ao Supremo Tribunal Federal com um argumento extremado: o de que os escravos foram corresponsáveis pela escravidão. “Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para a Europa. Não deveriam ter chegado na condição de escravos, mas chegaram. Até o princípio do século XX, o escravo era o principal item de exportação da pauta econômica africana.”
Pela tese do senador, eles exportaram, o Brasil importou. Simples. Aonde o crime? Tratava-se apenas de pauta de comércio exterior. Por ele, o fato de ter havido escravos na África; conflitos entre tribos; tribos que capturavam outras para entregar aos traficantes, e tudo o mais, que sabemos, sobre a história africana, isenta de culpa os escravizadores. Trazido a valor presente, se algumas mulheres são vítimas de violência dos maridos, isso autoriza todos a agredi-las. Ou se há no Brasil casos de trabalho escravo e degradante, isso permite aos outros povos que façam o mesmo conosco. Qual o crime? Se brasileiros levam outros brasileiros para áreas distantes e, com armas e falsas dívidas, os fazem trabalhar sem direitos, qualquer povo pode escravizar os brasileiros.
O senador Demóstenes é um famoso sem noção e com ele não vale a pena gastar munição e argumentos. Que ele fique com sua pobreza de espírito. O que me incomoda é a incapacidade reiterada que vejo em tantos brasileiros de se dar conta do crime hediondo, do genocídio que foi a escravidão brasileira. Não creio que as ações afirmativas sejam o acerto com esse passado. Não há acerto possível com um passado tão abjeto e repulsivo, mas feliz é a Nação que reconhece a marca dos erros em sua história e trabalha para construir um futuro novo. Feliz a Nação que tem, entre seus fundadores, um Joaquim Nabuco, que nos aconselha a destruir a obra da escravidão.
Comentário: Sem noção é esta jornalista que não estava presente na Audiência Pública mas que se arvora no direito de comentar o que nem sequer ouviu. O Senador não disse que as relações entre raças no Brasil escravocrata foram consensuais. O que ele disse é que os 500 anos de miscigenação no Brasil não podem ser atribuídos apenas ao estupro. Não somos filhos de estupro! Houve violência em relação às escravas? Sim. Houve estupro? Muitos. Mas querer dizer que toda a miscigenação no Brasil deriva da violência é forçar uma barra contando com a ignorância e com o recalque de muitos que simplesmente não estudam o tema.
A ignorância é tão prejudicial quanto o é o racismo!”
Em coluna no “O Globo” em 07/03/2010, Miriam Leitão comentou a visita de Hillary Clinton à Universidade Zumbi dos Palmares e criticou o combate às ações contra cotas raciais no Brasil. Roberta Kaufmann, colaboradora do Instituto Millenium, respondeu ao artigo no blog No Race Br:
“Caros:
Vou me dar ao trabalho de comentar o artigo abaixo.
Confiram:
Destruir a obra
É a temporada. Tempo de sofismas e argumentos tortos. Tempo das mesmices repetidas com ares de descobertas recentes. Hora de escapar do debate sobre a questão racial brasileira. Não precisava ser assim. Podia ser um tempo de avanços. Mas os que negam o racismo brasileiro preferem esse cerco à inteligência, ao óbvio, ao progresso.
Num ambiente negacionista, foi um alívio ouvir as explicações simples e diretas da secretária de Estado americana Hillary Clinton na Faculdade Zumbi dos Palmares, onde escolheu debater com estudantes. Hillary defendeu as ações afirmativas dizendo que, com elas, os EUA estão deixando para trás os vestígios da escravidão:
— Temos feito um grande progresso com as ações afirmativas em aumentar as oportunidades na educação, no emprego para os afro-americanos. Elas são o reconhecimento de que as barreiras históricas criam um funil que impede o acesso do grupo discriminado a níveis superiores de educação. É preciso alargar a entrada e deixar mais gente entrar. O talento é universal, mas as oportunidades, não. O acesso na universidade não é, no entanto, a garantia da graduação.
Hillary contou que, como professora de Direito, percebeu que muitos alunos que entraram por ação afirmativa tiveram dificuldades maiores pelas falhas da educação anterior. Ela se dedicou a esses alunos no sistema tutorial:— Simplesmente não podemos aceitar os estudantes na universidade para deixar que eles falhem. Eles têm que ser ajudados.
O sistema americano é diferente do nosso, mas discriminação é parecida em qualquer país do mundo. Ela barra com obstáculos sutis ou explícitos, negados ou assumidos, a ascensão de grupos discriminados por qualquer motivo, racismo, sexismo, ou outras intolerâncias. Lá, eles não têm cotas, não têm vestibular; o sistema, como se sabe, é o de application, o de se candidatar a uma vaga apresentando suas credenciais escolares. Ao avaliar quem entra, as escolas dão pontuação maior a quem vem de um grupo discriminado. Cada universidade tem um critério, um método e uma meta diferente, mas todas buscam um quadro de alunos com diversidade. Os alunos com menos chance de estar lá têm preferência nas bolsas para as caríssimas universidades privadas americanas.
— Estou muito orgulhosa das conquistas dos últimos 50 anos do movimento dos direitos civis, pelos que lutaram como Martin Luther King e outros, mas não posso dizer que o meu país não tem racismo, não tem sexismo — disse a mulher que comanda a mais poderosa diplomacia do mundo e é chefiada por um negro, que preside o maior país do mundo. Ela não vê a sua ascensão, nem a do presidente Obama, como provas de que não há barreiras para negros e mulheres.
Essa sinceridade é encantadora porque é rara no Brasil. Esse reconhecimento da existência do problema, e de que ele é vencido por ações concretas de políticas públicas e de empresas, dá esperança.
Comentário (por Roberta Fragoso Kaufmann):
Inicialmente, é preciso esclarecer: nos Estados Unidos o racismo foi institucionalizado como política de governo e de Estado por mais de 100 anos. Até 1967 era simplesmente proibido qualquer casamento entre as raças. Em 1953 ainda havia decisões judiciais que proibiam negros e brancos de conviverem no mesmo espaço físico. A sociedade como um todo acreditava que era correto discriminar, incentivada pelo fato de que a própria Suprema Corte abalizava as ações da Ku Klux Klan, ao dizer que eles praticavam liberdade de expressão.
Com efeito, apesar de ser tão bonito o que Hillary Clinton afirmou em seu discurso, o partido Democratas nada fez em termos de reparação ou de inclusão para os negros. A Lei dos Direitos Civis (na presidência de Lyndon Johnson), de 1965, apenas proibiu a discriminação com base na cor. A política implementada foi neutra. Coube a um Republicano, racista e conservador implementar a política de cotas para negros nos EUA: Richard Nixon, com o plano Filadélfia, em 1969. E isso só faz sentido se analisarmos o contexto que precedeu a implementação das cotas: iminência de Guerra Civil, após o assassinato de Martin Luther King (1968), o qual jamais defendeu políticas de cotas baseadas na cor da pele, mas sim para os pobres.
É óbvio que os EUA são um país extremamente racista, até hoje. E este racismo é consequência da política de Estado implementada por mais de um século naquele país. E mesmo sendo um país racista, COTAS RACIAIS JAMAIS FORAM CONSIDERADAS CONSTITUCIONAIS EM MATÉRIA DE EDUCAÇÃO. Atualmente, a cor da pele nem sequer pode ser um critério a ser considerado no âmbito educacional (caso Parents vs. Seattle, 2007).
No Brasil, ninguém discorda da existência de preconceito e de discriminação contra os negros, bem como é inegável a existência de preconceito e de discriminação em relação a homossexuais e nordestinos. Mas isto não quer dizer cotas para todas as minorias, ou que sejamos um país racista. Ou mesmo que exista um pensamento nacional voltado para a destruição da minoria segmentada. Aqui, os direitos não são segregados com base na cor da pele, mas sim consequências da má distribuição de renda. Os nossos valores (samba, chorinho, molejo, futebol) são antes de tudo valores pan-brasileiros, ou seja, congregam negros e brancos dentro da mesma cultura, em vez de culturas segregadas, como nos EUA.
Continuação do artigo:
No Brasil, o esforço focado nos negros é chamado de discriminação. E os brancos pobres? Perguntam. Eles estão também nas ações afirmativas, e nas cotas, mas o curioso é que só se lembre dos brancos pobres no momento em que se fala em alguma política favorável a pretos e pardos.
É temporada da coleção de argumentos velhos que reaparecem para evitar que o Brasil faça o que sugeriu Joaquim Nabuco, morto há 100 anos, em frase memorável: “Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra.”
Diante de qualquer proposta para reduzir as desigualdades raciais, principal obra da escravidão, aparece alguém para declamar: “Todos são iguais perante a lei.” E são. Mas o tratamento diferenciado aos discriminados existe exatamente para igualar oportunidades e garantir o princípio constitucional.
O senador Demóstenes foi ao Supremo Tribunal Federal com um argumento extremado: o de que os escravos foram corresponsáveis pela escravidão. “Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para a Europa. Não deveriam ter chegado na condição de escravos, mas chegaram. Até o princípio do século XX, o escravo era o principal item de exportação da pauta econômica africana.”
Pela tese do senador, eles exportaram, o Brasil importou. Simples. Aonde o crime? Tratava-se apenas de pauta de comércio exterior. Por ele, o fato de ter havido escravos na África; conflitos entre tribos; tribos que capturavam outras para entregar aos traficantes, e tudo o mais, que sabemos, sobre a história africana, isenta de culpa os escravizadores. Trazido a valor presente, se algumas mulheres são vítimas de violência dos maridos, isso autoriza todos a agredi-las. Ou se há no Brasil casos de trabalho escravo e degradante, isso permite aos outros povos que façam o mesmo conosco. Qual o crime? Se brasileiros levam outros brasileiros para áreas distantes e, com armas e falsas dívidas, os fazem trabalhar sem direitos, qualquer povo pode escravizar os brasileiros.
O senador Demóstenes é um famoso sem noção e com ele não vale a pena gastar munição e argumentos. Que ele fique com sua pobreza de espírito. O que me incomoda é a incapacidade reiterada que vejo em tantos brasileiros de se dar conta do crime hediondo, do genocídio que foi a escravidão brasileira. Não creio que as ações afirmativas sejam o acerto com esse passado. Não há acerto possível com um passado tão abjeto e repulsivo, mas feliz é a Nação que reconhece a marca dos erros em sua história e trabalha para construir um futuro novo. Feliz a Nação que tem, entre seus fundadores, um Joaquim Nabuco, que nos aconselha a destruir a obra da escravidão.
Comentário: Sem noção é esta jornalista que não estava presente na Audiência Pública mas que se arvora no direito de comentar o que nem sequer ouviu. O Senador não disse que as relações entre raças no Brasil escravocrata foram consensuais. O que ele disse é que os 500 anos de miscigenação no Brasil não podem ser atribuídos apenas ao estupro. Não somos filhos de estupro! Houve violência em relação às escravas? Sim. Houve estupro? Muitos. Mas querer dizer que toda a miscigenação no Brasil deriva da violência é forçar uma barra contando com a ignorância e com o recalque de muitos que simplesmente não estudam o tema.
A ignorância é tão prejudicial quanto o é o racismo!”