Exame.com
Continua após a publicidade

Revisitando o caos: lições aprendidas com os eventos de janeiro de 2023 em Brasília

Resultados das eleições estavam reconhecidos e certificados

Brasília: resultados das eleições estavam reconhecidos e certificados (Adriano Machado/Reuters)
Brasília: resultados das eleições estavam reconhecidos e certificados (Adriano Machado/Reuters)

Por Magno Karl*

Há um ano, um bloco de militantes radicalizados deixados livres para depredar prédios públicos nos lembrava da completa falência das instituições nacionais. Mesmo os estados mais fracassados, dos ditadores mais relapsos ou corruptos, se esmeram em projetar uma aparência de normalidade: os símbolos nacionais são preservados, a capital é relativamente limpa e organizada, os prédios públicos se destacam frente à miséria e a desorganização. Nem isso o Estado brasileiro conseguiu oferecer a Brasília no dia 08 de janeiro de 2023. 

Estimulados por um ex-presidente que, derrotado eleitoralmente, se recusava a seguir ritos essenciais do processo democrático, como reconhecer publicamente a derrota, brasileiros embriagados de fake news agiram sob uma espécie de transe coletivo, com suspensão de todas as normas em troca da realização da sua visão de justiça, como é comum em movimentos sectários. Numa alucinação coletiva, milhares de brasileiros, adultos e capazes saíram de suas casas como membros de uma seita à espera do arrebatamento vindo dos céus, da internet, ou de algum quartel do exército. 

Os idiotas golpistas que foram à capital manifestar sua ignorância não tinham chance de dar um golpe, porque nem sabiam exatamente o que faziam ali. Não pegaram armas, nem publicaram manifestos políticos. Ao contrário do que ocorria em Washington em 06 de janeiro de 2021, não havia cerimônia oficial no congresso nacional, os resultados das eleições estavam reconhecidos e certificados, o presidente da república e seus ministros estavam empossados. Como crianças birrentas, os brasileiros manifestaram seu descontentamento fazendo muita bagunça. Nesse caso, como são adultos depredando o centro do poder da república, a bagunça precisa dar cadeia. 

Os manifestantes de 08/01 não estavam mais perto de golpear a democracia brasileira do que estudantes grevistas estão de derrubar o capitalismo, mas isso não faz com que seus atos não signifiquem nada, e nem que a punição por seus crimes deva ser mais branda. É necessário, no entanto, que se evite armadilhas que transformem vândalos em personagens políticos relevantes e que a criação de uma história pública convincente se sobreponha à necessidade de uma investigação policial completa. 

Para além dos eventuais planejadores ou financiadores de uma tentativa de golpe de estado, principalmente àqueles que atuam dentro da máquina estatal, o foco na apuração deve ser posto nas autoridades encarregadas de proteger Brasília e as sedes dos três poderes da República. A eles entregamos o dever da preservação da constituição, sujeitos a hierarquia, sustentadas pelos nossos impostos, e responsáveis pela manutenção da ordem.  

Às autoridades reunidas nessa semana para celebrar a preservação da ordem democrática, cabe responder a perguntas que permanecem a serem respondidas, depois de um ano de investigações e pelo menos duas comissões parlamentares de inquérito. Por que o monitoramento da Polícia Rodoviária Federal não serviu para informar à polícia do DF a respeito do significativo número de manifestantes chegando a Brasília? Por que os manifestantes foram escoltados em direção à Praça dos Três Poderes, mesmo com a proteção aos palácios sendo visivelmente insuficiente para contê-los? Quantos foram os erros cometidos pelas forças encarregadas de proteger os três prédios e o que mudou nesses últimos meses para que os fatos não se repitam? 

E mais: Por que não se recolheu imediatamente todas as gravações de todos os prédios relevantes para investigação? Desde o primeiro dia, o governo tratou o tema com a mais absoluta importância, mas as imagens de lugares importantes (a presença do ministro Gonçalves Dias no Planalto só foi conhecida por uma reportagem da CNN) parecem ter passado ao largo das investigações. Por quê? A desinformação prospera na ignorância. Para combatê-la, o governo e a justiça precisam informar a sociedade. O custo das dúvidas a respeito do que aconteceu no dia 08 de janeiro pode acabar sendo maior que o dano causado pelos golpistas. 

Numa democracia sadia, as eleições precisam ser livres e competitivas, promovidas e fiscalizadas por instituições comprometidas com a manutenção das regras do jogo. O colapso local da segurança pública não é novidade no Brasil, mas vê-la acontecer no centro nacional do poder político, contra desafiantes artesanalmente armados, nos deve servir de alerta. A legislação de uma sociedade democrática deve ser capaz de acomodar expressões de descontentamento, mesmo em relação ao resultado das urnas, mas deve se manter firme na imposição de seus limites. 

Políticos e membros do judiciário organizaram nessa semana um festival público para se parabenizarem pela manutenção da democracia, mas ainda devem à sociedade explicações mais claras sobre a tentativa de golpe que teria acontecido no fatídico dia. E pior: seguimos sem saber se, depois de um ano de debates, demissões, prisões, e meia dúzia de documentários, as forças de segurança do Estado brasileiro estão mais preparadas a defender as sedes dos poderes da República Federativa do Brasil de loucos com ilusões golpistas, diferentemente do que fizeram há um ano. 

*Magno Karl é cientista político e diretor executivo do LIVRES