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Revisão do zoneamento de São Paulo é tímida, mas está na direção certa, afirma especialista

Instituto Millenium conversou com o coordenador do movimento Somos Cidade, Felipe Cavalcante, sobre o projeto que deve ser votado nesta terça

 (Acervo pessoal/Divulgação)
(Acervo pessoal/Divulgação)

Nesta semana, voltou à pauta o projeto de revisão da Lei de Zoneamento da cidade de São Paulo. O assunto já gerou muita polêmica ao longo do ano, sobretudo por permitir um maior adensamento urbano (mais pessoas morando no mesmo espaço). O projeto chegou a ser barrado por uma liminar do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MSTS), mas agora já está novamente liberado para votação na Câmara de Vereadores.  

Para entender melhor o projeto, suas implicações e o que realmente está em jogo com o adensamento, o Instituto Millenium conversou com Felipe Cavalcante, Coordenador do Movimento Somos Cidade e Fundador da ADIT Brasil. Ele acredita que, apesar das muitas concessões abertas, o projeto segue sendo benéfico, e que há muita agenda política por trás das manifestações contrárias. Confira abaixo o bate-papo.  

Instituto Millenium: O projeto original já passou por muitas mudanças, abriu muitas concessões à pauta “anti-adensamento”. Qual o saldo final? Ainda será um bom projeto para o urbanismo de São Paulo?  

Felipe Cavalcante: Na verdade, em termos de direção, ele está indo na direção correta em relação ao urbanismo e adensamento da cidade, mas ainda numa velocidade muito, muito pequena. Eu acho que essa questão do adensamento está muito atrelada ainda aos corredores de transporte, e que ela cria disfunções. Tem muita gente que não quer morar no corredor de transporte e acaba gerando esse tipo de problema como a gente teve com os NRs também aqui. Eu acho que o adensamento tem que ocorrer onde as pessoas querem morar. Existem áreas da cidade, como os Jardins, que são preservados, que deveriam ter um processo de maior adensamento, e várias outras áreas da cidades, inclusive os famosos meio de quadra, onde, por algum motivo, não é possível adensar. Então, acho que o novo zoneamento começa a dar alguns sinais de que vai transferir da teoria para a prática o que todos os urbanistas defendem, de que o adensamento é algo positivo, inclusive para o meio ambiente, para vitalidade das cidades, para oferta de serviços e para redução de custos de infraestrutura. Mas falta muito ainda para quebrar alguns tabus. 

IM: Quais as principais mudanças que você faria no projeto? 

FC: Acho que essa questão do adensamento é a grande questão do plano diretor, de onde se deve adensar ou não. Acho que ninguém, nenhum planejador urbano, tem condições de decidir o que deve ser construído e quanto, em cada quadra da cidade, em cada lote da cidade. Então, sem sombra de dúvida, eu aumentaria em primeiro lugar o potencial de  coeficiente construtivo. Em segundo lugar, eu também reduziria – isso é crucial – a quantidade de zonas e de regras para lotes, para quadras. Simplificaria demais o zoneamento da cidade, que ainda é um zoneamento muito baseado no modernismo, no zoneamento funcional: o que pode ser feito, em qual local, em que tipo de indústria, que tipo de comércio. Hoje a gente não tem mais aqueles problemas de indústrias poluidoras que tínhamos cem ou cento e cinquenta anos atrás, então seria muito mais fácil dizer apenas que determinados tipos de atividades que causam ruído, que causam barulho, que causam poluição, são proibidas em determinadas zonas. Então acho que para mim esse zoneamento mais focado na performance e nos indicadores ambientais do que exatamente em que tipo de atividade pode ser feita, seria uma grande mudança, além de que, junto com isso, obviamente, de simplificar demais o zoneamento e aumentar o potencial construtivo em toda a cidade, gerando um choque de oferta de moradia. O objetivo do planejador urbano tem que ser aumentar a oferta de moradia acessível, além da gestão do espaço público e da mobilidade. Então, no que se refere a ofertar moradia acessível, sem sombra de dúvida, o que daria o maior resultado seria um grande aumento na oferta de moradia na cidade. 

IM: Quais seriam as vantagens de um maior adensamento para uma cidade como São Paulo? Em que grande metrópole mundial deveríamos nos inspirar? 

FC: O adensamento, não só para a cidade de São Paulo, mas para qualquer cidade do mundo, em primeiro lugar, tem como vantagem, no momento em que a gente está hoje, a questão ambiental. Quanto mais adensada uma cidade, menos espraiada ela será. A ocupação das periferias das cidades geram muito mais consumo de energia, contribuem muito mais para o aquecimento global, além de destruir mananciais, áreas verdes, áreas de agricultura. Mas, fora isso, no nosso caso de São Paulo, ela é mais cruel ainda, porque ela empurra para a periferia as pessoas mais pobres. Como existe um grande cerceamento, como o adensamento é combatido nas zonas centrais dotadas de infraestrutura, a escassa oferta de moradia nessas regiões acaba sendo ocupada por quem tem mais dinheiro, pela classe alta e pela classe média. Isso gera um efeito cascata, que vai empurrando os mais pobres para a periferia, que tem que andar duas, três horas, de transporte público para chegar nos empregos. Esse para mim é o maior problema, e o maior benefício de se alcançar a cidade, junto com o meio ambiente. Fora isso, na redução do custo de infraestrutura, imagina que, se você tivesse mil pessoas morando numa região, se você passa a ter 10.000, você tem que ter muito mais, não só investimento em infraestruturas de água, esgoto, energia, etc., mas em serviços públicos, como o lixo e vários outros. O outro fator que beneficia muito é que o adensamento gera a possibilidade, por ter uma maior quantidade de pessoas em determinada região, de haver viabilidade econômica para maior quantidade de oferta de serviços e comércio. Isso a gente vê na periferia, especialmente como existem empreendimentos em regiões com baixíssimo adensamento, como é muito mais difícil esses comércios se estabelecerem. A questão da caminhabilidade, de cidade para as pessoas também, vem atrelada ao adensamento. Não tem como se criar lugares caminháveis que não sejam voltados para as pessoas, extremamente desadensados. É preciso haver vida na rua e haver coisas interessantes para as pessoas verem. 

IM: São Paulo tem hoje um déficit habitacional de 369 mil moradias, segundo o IBGE. Sabemos que as restrições de adensamento e dificuldades de construções, de uma forma geral, são grandes causas desse déficit. No entanto, um dos movimentos que são contra regras mais flexíveis é justamente o MSTS, que em teoria luta para que as pessoas tenham acesso à moradia, mas chegou a conseguir uma liminar para barrar a tramitação do projeto. Não parece um contrassenso?  

FC: Não só o MTST, mas diversas entidades de arquitetura, de academia, são contra o adensamento na prática e são contra o plano diretor. Essas entidades acabam se atrelando a coisas do passado e a um estilo urbanista de zoneamentos monofuncionais de maior controle do planejamento urbano em si, dizendo às pessoas onde elas devem morar, em que tamanho de unidade elas devem morar, quais são as classificações das unidades. Fora isso, sem sombra de dúvida, existe uma agenda política muito forte com todas essas entidades que combatem os planos diretores. Você vê que nos planos diretores feitos pela chamada ‘direita’ sempre há muitas ações judiciais e questionamentos. Nos feitos pela esquerda, como em 2014, nunca houve nenhuma ação. Então, a agenda política está tentando tomar conta também dessa discussão. Existem também associações de bairros, de moradores de classe média e alta que também entram na Justiça sempre que seus interesses e benefícios não são atendidos. Eles tentam barrar o adensamento e a ocupação das melhores áreas da cidade para que fiquem morando em casas no centro da cidade, com toda a estrutura do lado do metrô. Esses são alguns pontos. E, especialmente, uma coisa que está crescendo muito, que é a tentativa de, ao não conseguir com que seus pleitos sejam atendidos no plano diretor, essas pessoas recorrerem à Justiça para tentar, com isso, no mínimo, protelar o encaminhamento. 

IM: Existe uma crítica recorrente de que o maior adensamento perto do metrô não atingiu o objetivo, e acabou servindo mais para Airbnb. Como responder a essa crítica e como resolver esse problema, se é que isso é um problema? 

FC: Isso nasce, primeiro de tudo, de uma certa desconexão com a realidade, uma ingenuidade de entender como é que o mundo real funciona. Os lugares mais caros da cidade, os lugares mais desejados, com mais infraestrutura, têm os terrenos mais caros. Não é possível haver habitação social nesses locais se não for através de um extremo e alto subsídio do poder público. O terreno é o item mais caro do empreendimento, então ele sempre vai refletir no preço da unidade, porque o tijolo é o mesmo na periferia ou no centro. Então, em primeiro lugar, as pessoas têm que entender como funciona a economia, a economia urbana, a oferta e demanda. Sem isso, não adianta. Eles vão querer que construam unidades de quarto e sala ou estúdio para serem ocupados por habitação social, quando, na verdade, o mercado não funciona assim. Então, esse é o maior problema. Essas pessoas, na verdade, são contra o adensamento, de maneira geral. Elas querem manter o status quo e elas ficam encontrando argumentos para combater o adensamento. Um deles, especialmente muito atrelado à esquerda, é dizer que o adensamento só é justificado se ele for feito para gerar habitação social e não para oferta de mercado. A habitação do mercado é fundamental, através de um processo chamado filtragem, onde a oferta de empreendimentos de alto padrão nas regiões centrais fazem com que vá trazendo para mais próximo da cidade as pessoas mais pobres, do mesmo jeito que no oposto, onde existe escassez de recursos, escassez de oferta de moradia nas zonas centrais, vai empurrando para mais longe as pessoas mais pobres. 

IM: Na sua opinião, quais foram os principais acertos e defeitos do plano diretor vigente? Como ele está influenciando a elaboração e a discussão em torno do novo plano diretor? 

 FC: Sem sombra de dúvida, ele caminhou na direção certa, numa cidade mais voltada para as pessoas, retornando com fachada ativa, uso misto, ainda de maneira muito insipiente, tímida, mas foi na direção correta. Por outro lado, ele peca por, mais uma vez, não considerar como as coisas funcionam no mundo real, tentar impor soluções que já se provaram erradas em vários lugares do mundo e que estão desconectadas da realidade do mercado.